sábado, 29 de novembro de 2008

Vandalismo rupestre 02 - Fraga do Gato


A Fraga do Gato, em Poiares (Freixo de Espada-à-Cinta), ladeando a calçada de Alpajares, é um dos raríssimos exemplos europeus de arte paleolítica de ar livre que se conservou até aos nossos dias. O paredão vertical, resguardado num pequeno abrigo sob-rocha entalado nos xistos, ostenta duas figuras com uma originalíssima temática no contexto da arte pré-histórica europeia: um bufo pequeno pintado a negro, e um provável mustelídeo (lontra?) pintado a vermelho.  
Localiza-se numa zona de grande e esmagadora beleza paisagística, anichada na monumentalidade do Douro, em sítio hoje relativamente acessível.
 
A primeira vez que visitei o local (nunca monografado e que publicarei no meu próximo livro), na companhia de Mário Varela Gomes e do saudoso António Beltrán, todos ficámos surpreendidos pelo ineditismo das figurações que ainda se deixavam apreciar relativamente bem. 
Posteriormente e no sentido de salvaguardar o registo arqueológico das pinturas, realizámos o levantamento do painel com uma equipa do extinto Centro Nacional de Arte Rupestre. Há poucos anos atrás, tentei, com André Santos e Domingos Cruz, colher amostras da pintura a negro para uma datação OSL, mas não restava já qualquer resíduo orgânico que o permitisse, estando o paredão pintado muito lavado. 
Entretanto visitei o local em outras ocasiões e de cada vez que por lá peregrino, como na passada quinta-feira, sente-se a degradação continuada deste notabilíssimo sítio rupestre, com mais umas pedradas atiradas por gente ignorante (só pode ser!) e mais uns quantos riscos que se vão acrescentando, delapidando o painel pintado. E é lamentável que assim suceda, pois é uma das mais originais estações da nossa arte rupestre de ar livre e um exemplo raro pelo tipo de motivos que ostenta.

Portugal nunca adoptou o modelo espanhol de resguardo deste tipo de abrigos pintados com selagem por gradeamentos ou até limitando os acessos através de um qualquer sistema de guardaria. Se por um lado os gradeamentos desfiguram os enquadramentos dos sítios, por outro, quando não haja guardaria dedicada, as grades não impedem o vandalismo do apedrejamento, como o que aqui acontece. E não há aliás outra forma de salvaguardar sítios com estas características que não o da cultura cívica dos visitantes ou dos passantes. E isso aqui não se tem verificado. A não divulgação dos sítios é um modelo que também não está de acordo com os tempos que correm, nem isso se poderá defender ad infinitum. Resta-nos esperar que o civismo impere e se torne uma norma da nossa convivialidade com estes monumentos do passado remoto.




Fotos: AMB. Desenho: Fernando Barbosa/CNART

Para uma crisologia em tempos interessantes

Público, 28 Nov. 2008

Benigna reflexão do ex-ministro Campos e Cunha, ao encontro do que muitos de nós pugnam, quais vozes pregando no deserto. E que remete antes de mais para o papel político da Cultura, dramaticamente menorizada numa época de megalomania e voluntarismo financeiros, como parece ser o exemplo do "monstro do TGV" que, como é facilmente perceptível, sai fora (e de que maneira) do princípio da sustentabilidade aqui defendido. Princípio que tão bem se aplica ao Vale do Côa, uma pérola apesar de tudo em fase de lapidação, pese embora aqui continuem a faltar algumas das "ferramentas" do progresso. 

O abandono e/ou o não aproveitamento científico-turístico de muitas das nossas jazidas arqueológicas é, também ele, um problema de mentalidade. Uma forma de estar. E claro que também das políticas orçamentais. Por isso sempre recusei o argumento "de que não há dinheiro"! Porque ele existe. Está é fora de sítio.

Repare-se que a maior parte das nossas grandes descobertas arqueológicas não se devem a projectos consistentes e de raiz, mas só são reveladas e estudadas (quantas vezes nem isso) perante as ameaças de uma ou outra grande obra pública, seja ela uma barragem, uma auto-estrada, a conduta do gás, ou... o TGV. Consequentemente, a valorização desses sítios fica desde logo diminuída e também ela ameaçada, quantas vezes apenas memorizada em singulares e pobres (porque descontextualizados) "centros de interpretação" ou "casas da memória". O caso da Arte do Côa é verdadeiramente uma excepção - o mesmo não aconteceu infelizmente com a Arte do Tejo na região de Fratel -, mas o seu salvamento, embora tarde em ser verdadeiramente exponenciado nos termos em que Santos e Cunha aqui escreve, foi, apesar de tudo, feito. E com isso enriqueceu a região e o país.
  
Mas Portugal nunca produziu uma verdadeira carta arqueológica nacional. Em 1995, durante um debate no Instituto Superior Técnico em que participava com engenheiros a propósito do problema da barragem de Foz Côa, um desses engenheiros questionava-se (incrédulo) porque não teria até então o país elaborado uma carta arqueológica que prevenisse problemas e situações como a que estava a acontecer no Côa. Como tinha uma carta de solos, uma carta ecológica, uma carta geológica (mais de um século a completar)... Pois se até anos recentes nem um verdadeiro curso de arqueologia havia. E a arqueologia foi sempre em Portugal (pelo menos até há pouco) uma espécie de ciência menor que tanto podia ser experienciada por médicos, engenheiros, economistas, advogados e até... historiadores. Honrosas profissões liberais que na arqueologia encontravam um escape.

Pensamentos que explicam bem porque tão cedo o ex-ministro Campos e Cunha abandonou o barco de um governo de maioria absoluta. Os ventos, nestes tempos interessantes (para usar a expressão de Hobsbawm), não sopram de facto tanto ao encontro dos esteios da sustentabilidade quanto para os da insensatez financeira e da desmemória...

Arte do Côa Património da Humanidade - 10 anos


Os números redondos apelam à comemoração! E pesem embora os tempos de aguda crise financeira, há 10 anos que a Arte do Côa foi considerada Património da Humanidade e a data justifica mais uma comemoração. Que deve ser motivo de orgulho para a região e para Portugal.
Entre 2 de Dezembro e 15 de Janeiro, um lote de actos, entre o simbólico e o pragmático e que se pretendem também eles memória para futuro, lembram ao passante este facto tão singelo quanto significativo: as maravilhas do Côa fazem parte da memória mais preciosa da Humanidade. 

Cabeça de cavalo Magdalenense da rocha 3 da Ribeira de Piscos. Foto: AMB/MA

Com uma ressalva a este cartaz. O meu próximo livro aqui anunciado como a ser lançado a 13 de Dezembro, só o será efectivamente a 20. E posso dizer-vos que está cheio de novidades. Foi a sua preparação que me manteve por algum tempo afastado deste espaço bloguista...

quarta-feira, 19 de novembro de 2008

A fala da ex-Ministra

Público 19.Nov.2008

Depois do ministro (último Expresso), a ex-ministra. E a tese explica-se em duas linhas: é preciso alargar as competências do Ministério da Cultura, anexando-lhe o Turismo, e não extingui-lo, como alguns propõem (Walter Rossa, no caso), face à sua insignificância orçamental cada vez mais ridícula - é o termo.
Por uma vez concordo. Por natureza, desde os tempos em que contribuía para conter o pouco criterioso turismo verde da Peneda-Gerês (introdução de portagens na Mata de Albergaria, vedação de acessos às zonas mais elevadas e de reserva da serra do Gerês...), sou um desconfiado das virtudes do turismo "tout court". Mas nos mais de 35 anos que levo de envolvimento nas problemáticas arqueológicas em Portugal, reconheço que sem turismo não há salvaguarda do património que resista... 
É isto suficiente para que o Ministério da Cultura anexe competências alargadas na área do Turismo a ponto de considerarmos a criação de um Ministério da Cultura e Turismo? É! Caso contrário estaremos (militantes do património em geral) condenados ao insucesso. E perante os problemas do mundo actual exige-se pragmatismo.

O caso do Vale do Côa é paradigmático a este respeito. Contribui, e assim continuo, para a salvaguarda da arte do Côa e para a sua conservação no interior de uma área classificada como Parque Arqueológico, que quando foi criada não tinha sequer suporte legal a enquadrá-la. Passados estes anos, guerra ganha por entre uma que outra batalha menos bem perdida, parece termos caído num impasse, já que o turismo é por (quase) todos apontado como a "salvação" dos sítios arqueológicos. Não é bem assim, mas quase. Se continuarmos (e parece que assim será) limitados às benesses de um estado centralista e macrocéfalo como o que agora temos, longe de uma certa regionalização que os políticos temem e teimam em esquecer, então que seja o turismo a bóia de salvação. Mas gerido por agentes da cultura!

Mas pergunto: que fazem os responsáveis políticos quando detentores do poder? Parece que se limitam a geri-lo, reestruturando, reestruturando...  sem fim à vista...

sábado, 15 de novembro de 2008

Vale do Côa Outonal


Longe já o bulício e as quenturas do veraneio, quem, aproveitando estes frios mas solarengos dias outonais, tiver a oportunidade de visitar as gravuras paleolíticas da Penascosa, vai também poder apreciar a lenta glória da desfolhagem da Ervamoira, colhido que foi o fruto das vides, que agora se transmutam em castanhos sublimes. 
Instalado o Outono, é esta a mais bela estação no Vale do Côa, sublinhando o cromatismo das paisagens...





Fotos: AMB
Nov'08

A fala do Ministro: "Ministério da Cultura não tem credibilidade"!





Bom, se é o ministro que o diz, quem sou eu para o desmentir?! 
Mas valerá a pena lembramos que a decisão política de construir o museu do Côa na sua actual implantação tem pouco mais de 5 anos e é do ex-ministro Roseta. E que a primeira pedra foi lançada nos últimos dias de Janeiro de 2007 pela ex-ministra Pires de Lima. Que logo depois se encarregaria de desmantelar o Instituto Português de Arqueologia e extinguir o Centro Nacional de Arte Rupestre. E que agora atira esta pérola ao seu sucessor, afinal ministro da mesma pasta, na mesma legislatura e do mesmo governo...