segunda-feira, 1 de dezembro de 2008

Vale do Côa no Público. Tempo de balanço



Os jornais vivem de polémicas e o Público faz pela vida. E seria um must que se reacendesse a batalha do Côa, que está morta e enterrada. Excepto nos arroubos de uns quantos, que o colunista, entre o irónico e a citação do desconchavo (a "fantochada de um grupo de paleolíticos") resolveu inventariar sob um título jocoso em que nem ele próprio acredita. Porque não: Portugal a caminho de se tornar um paraíso taliban ? Como se sabe, são sempre os mesmos os taliban de serviço. E sem paciência para o contraditório... Entre o desbragamento de Mira Amaral e o de Miguel Sousa Tavares, o resto é paisagem. Minimalista. Será que basta uma andorinha para fazer a primavera?! 

Mas o editorialista Manuel Carvalho não é de modas e resolveu aprofundar (e bem) o problema, considerando-o, apesar de tudo (e mal), uma história de não sucesso. Exigem-se portanto algumas precisões. 

Velho conhecedor dos assuntos do Côa e da região do Douro, não se deixou embalar pela história (típica de um jornalismo preguiçoso) do número de visitantes e das guerras que já foram "gravuras versus barragem". Não questionando, antes reafirmando, o valor intrínseco da arte rupestre e da sua classificação pela Unesco, a todos, guardiões deste património, nos invectiva e...  injustamente acusa. 
É que não fomos nós, arqueólogos, que afastámos os visitantes! Foram antes os tais "poderes públicos" que invoca, que não criaram condições para termos mais visitantes. Se o museu do Louvre expusesse a Mona Lisa junto à pirâmide da fachada teria muitos mais visitantes! E é isso que interessa?
 
É que parece não basta dizermos que há anos tudo parou no Côa. Que estamos, longe de tudo, no interior mais fundo de Portugal. Ou que fomos deixados à sorte pelos últimos governos da nação. Ou que isto parece ser "o elefante branco do PS". Ou que o Parque Arqueológico há mais de 6 anos que não tem sequer orçamento próprio! Ou que o CNART foi extinto há quase 2 anos. E que nem migalhas sobram. Centros de Interpretação in loco, piqueniques no Côa, circuitos pedestres? Tudo isso está óptimo (e o Parque algumas dessas coisas foi fazendo), mas não com gravuras em fundo sob o alto patrocínio dos poderes públicos. A ser assim e sem uma conveniente guardaria, impossível em todo o vale, as gravuras estariam hoje sobrepostas por rabiscos, nomes e datas. O habitual!  Já foi a Siega Verde ver como ficou a arte paleolítica antes da vedação recente do sítio (mais de meio quilómetro de rio)? Saberá que em Lascaux nos anos 50 até casamentos se realizaram no interior da gruta? Hoje está fechada ao público... para sempre! Da mesma forma que Altamira. E Chauvet, que o governo francês decretou nunca seja aberta ao público por, como nas outras grutas, ter graves problemas de conservação. Cito-lhe apenas os 3 casos mais exemplares, porque são o supra-sumo da arte pintada paleolítica. E muitas vezes se diz que Altamira é visitada por mais de 200.000 pessoas. Falso. Essas pessoas todas não vêem mais que um museu e um tecto falso. Na gruta não entram mais de 20 pessoas/semana. Portanto, Foz Côa é um caso de insucesso por não carrear para a região centenas de milhares de visitantes!!?? Coisa que, evidentemente, aconteceria com a barragem do Baixo Côa, o que até nem MC acredita. Isto é tudo tão relativo!

Veja como somos ingratos com as nossa próprias coisas. O museu de Altamira é inaugurado mais de 120 anos após a descoberta da gruta. O museu do Côa será inaugurado 15 anos após a revelação das gravuras. Siega Verde, em Espanha, descoberta em meados dos anos 80, espera que se construa o museu do Côa para atrair visitantes. Tem neste momento menos de 4.000/ano e já há anos que tem no sítio um Centro de Interpretação. Foz Côa, na mesma região, chega aos 20.000, mais outros tantos que não chegam a ver as gravuras, por não terem reservado visita. 
E já agora, porque não dizermos que responsáveis da Unesco nos apontaram em tempos como modelo de salvaguarda de sítios rupestres de ar livre? 

Há de facto uma enorme responsabilidade social na criação do PAVC, não por se ter contestado uma barragem, mas porque nos caiu em cima a responsabilidade de estudarmos e valorizarmos o mais emblemático sítio arqueológico de Portugal, que é o Vale do Côa. Onde há muito nada se investe, a não ser o esforço dos que aqui continuam.
 
Ora, há evidentemente culpas partilhadas e o Parque Arqueológico do Vale do Côa paga ainda hoje o divórcio instalado a partir da sua criação com alguma população local. Mas muito se fez nos últimos anos para inverter esta situação. Mas onde falta pão...

E, meu caro Manuel Carvalho, acha mesmo que as gravuras "são feias"? Ou é apenas uma figura de estilo?

Como já tenho dito e redito, temos hoje que ser pragmáticos nestas questões do património e do turismo. E, no que dou razão aos nossos críticos, no mundo actual não há forma de continuarmos a manter o actual sistema de visitas por muito mais tempo. É um modelo que se esgotou, mas que foi muito útil nos primeiros anos de criação do Parque. Será isto que contribuirá para que a história da barragem do Côa entre definitivamente na pasta dos assuntos arquivados nos escaninhos da história. É que nem o museu bastará. Outros assuntos virão à tona. Esta história parece que só parará quando se descobrir a fusão a frio!!

E, mais uma vez, lanço um desafio aos nossos jornalistas: vão a Vila Velha de Ródão, a menos de 200 quilómetros de Lisboa, e interroguem-se e escrevam do que ganhou turística e economicamente aquela região com a construção da barragem de Fratel e o afundamento do complexo de arte rupestre holocénica do Vale do Tejo?! Que nem sequer merece a dignidade de ser considerado Monumento Nacional porque... está submerso no coração da região com a mais envelhecida população da Europa!! É o país, meus senhores, é o país...