domingo, 12 de outubro de 2008

Vandalismo rupestre 01 - Veado do Vale do Sabor

O precioso vale do Sabor na zona do Cabeço do Aguilhão

Em 19 de Outubro do ano 2000 tinha, com uma equipa do então Centro Nacional de Arte Rupestre, identificado esta rocha gravada com arte pós-glaciar, no Vale do Sabor, perto do sítio conhecido como Cabeço do Aguilhão.

Não sendo um sítio ameaçado e estando a minha equipa absorvida pelos trabalhos no Guadiana (Alqueva), realizei o seu estudo cerca de três anos depois, num momento em que se identificaram e estudaram outras rochas gravadas na mesma zona do rio, perto do santuário de Santo Antão da Barca (todas pós-glaciares).

Infelizmente e pese embora não se divulguem as coordenadas destes achados avulsos, não será difícil, ainda que a olhares menos experimentados, redescobrir (e vandalizar se for caso disso) estes sítios, isolados e não protegidos, que guardam alguns dos mais interessantes vestígios da imagética do nosso passado pré-histórico.


Foto: P.Couteiro

Claro que o vandalismo é intencional, um pobre híbrido zoomórfico, mal picotado e intencionalmente sobreposto ao cervídeo em estilo tardo-neolítico/calcolítico.
Uma consequência das polémicas que envolvem a construção de mais uma barragem? Quase seguramente, mas antes de mais uma prova da irremediável ignorância e incultura que grassa no "país real".
 

Aspectos do levantamento da r. 1 do Cabeço do Aguilhão



Uma segunda rocha com um equídeo picotado, foi então detectada e estudada junto ao já conhecido painel do cervídeo:
Claro que haverá novas rochas com arte rupestre no Vale do Sabor, até porque o vale nunca foi objecto de prospecções especializadas em arte pré-histórica... E, entretanto, o CNART foi extinto...

Fotos: AMB/Manuel Almeida/CNART
Desenhos: Fernando Barbosa/CNART

Os mortos que mais rendem. Arte rupestre e capitalismo no Vale do Côa

No P2 do jornal Público de hoje e segundo o The Guardian, há uma curiosa lista estatística dos dez mortos que mais rendem neste mundo globalizado, e que aqui insiro:

O que me suscita a seguinte reflexão:
Porque rendem tanto estes mortos e tão pouco a herança dos nossos mortos paleolíticos e anexos?
Repare-se: tudo bebe da imagem, da "obra" e seus direitos, e da sua utilização numa "imensa panóplia" de tantas inutilidades, mas que o povão gosta!
Ora o Vale do Côa é já um objecto de desejo, primeiro ponto a ter em conta, e é a nossa melhor herança pré-histórica e uma mina por explorar a este nível, já que aqui até os bilhetes de entrada nos sítios continuam bonificados. E tudo continua objecto de uma espécie de "socialismo de estado", do trabalho mal pago aos direitos de imagem que não se cobram. 
Porque enquanto deixarmos descapitalizar, quer as nossas próprias imagens, quer as notáveis figurações rupestres que vamos captando em desenho ou fotografia, apenas conseguiremos entrar no ranking dos menos rentáveis, dos papalvos do sistema.
Existe uma lei de direitos de autor e direitos conexos em Portugal, mas é o próprio Estado que não lhe liga, perdendo de caminho um ror de dinheiros que parece ser hoje o que mais atormenta os estados e nos vai empobrecendo no dia-a-dia.
Se de início se pensava que a divulgação das imagens rupestres do Côa servia os propósitos de salvamento e divulgação dos sítios, há muito que essa etapa está ultrapassada. E são os governos que hoje nos incitam à imaginação a benefício da sobrevivência de empregos e manutenção do bem-estar (a tal coisa que o ministro Pinho decretou ter terminado!). 
Por quanto tempo mais vamos continuar a deixar banalizar as imagens do Côa sem o conveniente retorno, para utilizar a gíria dos economistas? Estou certo que se uma empresa privada iniciar um dia a exploração dos sítios e/ou do futuro Museu do Côa (nunca se sabe se lá chegaremos e talvez não venha longe o dia), logo esta situação se alterará... 
É que, da mesma forma que Elvis Presley, também o Côa "revolucionou tudo" no pequeno mundo da nossa arqueologia, mas também no grande universo da arte paleolítica. Mas há lições que tardam a ser levadas à prática. Mesmo em tempo de aguda crise.

sábado, 11 de outubro de 2008

Obras-Primas da Arte do Côa 04 - Placa da Idade do Ferro do Paço (Vila Nova de Foz Côa)



Esta peça é uma pequena maravilha e será um dos raros originais a integrar as colecções visitáveis do futuro Museu do Côa. Porque é o primeiro exemplar (e até agora único), aparentemente de arte móvel da IIª Idade do Ferro, até hoje identificado no Vale do Côa. Foi encontrado há poucos anos no sítio do Paço, muito perto de Vila Nova de Foz Côa e manteve-se até hoje inédito. A pedra deveria ter estado com a face gravada enterrada por muitos anos, daí o excelente estado de conservação das gravuras, todas obtidas por incisão, na maioria das figuras bem aprofundada.

É uma pequena placa de xisto acastanhado, com menos de dois palmos de largura, achada à superfície, num contexto com cerâmicas de época romana (comuns e sigilatas). O sítio está perto de algumas das grandes estações de arte rupestre da Idade do Ferro na zona da foz do Côa. A placa era de maiores dimensões, pois há uma série de figuras cortadas por fractura, quer na parte direita, quer na zona inferior. Está gravada apenas numa das faces da laje. Também poderia pertencer a um painel rupestre, mas o tipo de lascagem leva-me mais a considerar esta peça como uma placa de arte móvel, tipo ex-voto, o que faz dela uma novidade absoluta no contexto do Côa. Infelizmente, não há sítios da Idade do Ferro escavados na região... 

Nela se contém uma síntese da nossa arte da Idade do Ferro, como se sabe o segundo mais importante ciclo artístico do Vale do Côa/Alto Douro. Guerreiros, montados sem sela, em cavalos conduzidos por arreios ziguezagueantes e aparentemente sem freios, com o armamento típico da IIª Idade do Ferro: lanças ou dardos longos, um pequeno escudo redondo, idêntico ao modelo em madeira descrito por Estrabão para os Lusitanos e um aparente machete ? (um percursor da falcata, na figura inferior). É muitíssimo interessante o modelado interno dos cavalos, idêntico ao exemplar da rocha 6 de Vale do Forno, junto a um guerreiro apeado. A figura inferior direita poderia estar em pé sobre um cavalo, infelizmente quase inteiramente desaparecido.

Um aspecto interessante nestas formas humanas é a sua tipologia com a ausência das clássicas cabeças em bico de pássaro, aproximando-se estas mais dos antropomorfos do sítio do Vale da Casa ou Vale de Canivães.
A tipologia destas figuras poderá ser cronologicamente anterior à dos humanos com cabeças em forma de bico de pássaro. Porém a arte do Ferro está em grande parte por estudar.

Mas uma das mais interessantes figurações desta placa é sem dúvida a de um canídeo montado no dorso de um outro (assim identificado pelo tipo de cauda), tocando-se as bocas. A figura maior parece ter duas cabeças, mas isso também se poderá dever à forma do modelado interno. Mas não se descarta a hipótese de estarmos perante uma representação bicéfala de carácter mitológico, como aliás o será toda a decoração desta notável peça da Idade do Ferro do Baixo Côa.

Fotos: Manuel Almeida (CNART)
Desenho: Fernando Barbosa (CNART)

sexta-feira, 10 de outubro de 2008

Centro Nacional de Arte Rupestre (CNART). Dafinitudedotempo


O homem e a espiral. Extracto de um belo painel da rocha 72 do Cachão do Algarve, no Vale do Tejo (Vila Velha de Ródão). Na altura (1997), optámos por este símbolo e não por uma inevitável gravura do Côa, como a que evidentemente fora escolhida para símbolo do Parque Arqueológico do Vale do Côa. Até para conceder ao CNART, estanciado em Foz Côa, a dimensão nacional que todos desejávamos tivesse. E que só episodicamente aflorou.
Na aliança entre o homem e a espiral se conjugavam as origens e a temporalidade da vida. A espiral é, mais do que o círculo, um símbolo do absoluto e do eterno retorno, onde tudo se contém e nada se conserva, onde tudo se transporta e transforma em perpétua reorganização. Chegámos na altura a pensar na aliança simbólica entre o homem e o sol, de que há também pelo menos três imaginativos exemplares no Vale do Tejo, os únicos evidentes em território português. Mas era mais redutor...

E na espiral nos remirámos em perpétuo movimento por 10 curtos, curtos anos! Consequência evidente da batalha do Côa, Portugal era um dos únicos estados europeus que criara um serviço unicamente devotado ao estudo, salvaguarda e divulgação da sua arte rupestre. Pousadas as armas pelo Côa e embora a arte rupestre tenha em Portugal ganho foros de extrema honorabilidade arqueológica, ao primeiro sinal de crise o CNART é desclassificado e eufemisticamente (re)integrado na modorra administrativa, centralista e tentacular tão típica da maneira de ser português. Os tempos estão difíceis, tudo é posto em causa, o tempo é dos contabilistas... 

O Estado Português trata mal dos seus funcionários! Sem uma justificação, sem um resmungo, um lamento ou um agradecimento pelos serviços prestados, ou até um raspanete pelos não prestados, o Estado Português, pela mão do governo em exercício, extinguiu o CNART em 30 de Abril de 2007. Porquê? perguntar-se-á... Bom, de acordo com o não dito, parece que a coisa passa pela racionalização de serviços (mas não... irá talvez para além disso!), extinguindo-se aqui, parece, o mais pobre dos serviços públicos do Estado Português, que tinha na altura um orçamento (aliás, já nem isso tinha, como o próprio PAVC!) quase ao nível de algumas das reformas mensais que o mesmo EP paga a serventuários com uma dúzia de anos de bons e leais serviços (presume-se)! Passado o período de nojo, é chegado o tempo de balanço...

Antes até de inaugurado, o CNART diluiu-se nas brumas da memória. 9 anos de luta por uma sede e no momento em que tal se consegue (obrigado, administração local), morre o serviço, mas não a motivação pela defesa da nossa arte rupestre!

A memória do CNART está por ora no Vale do Côa, no seu Parque Arqueológico de futuro tão incerto como a crise dos especuladores financeiros que hoje assola o tempo das globalizações.