segunda-feira, 1 de dezembro de 2008

Vale do Côa no Público. Tempo de balanço



Os jornais vivem de polémicas e o Público faz pela vida. E seria um must que se reacendesse a batalha do Côa, que está morta e enterrada. Excepto nos arroubos de uns quantos, que o colunista, entre o irónico e a citação do desconchavo (a "fantochada de um grupo de paleolíticos") resolveu inventariar sob um título jocoso em que nem ele próprio acredita. Porque não: Portugal a caminho de se tornar um paraíso taliban ? Como se sabe, são sempre os mesmos os taliban de serviço. E sem paciência para o contraditório... Entre o desbragamento de Mira Amaral e o de Miguel Sousa Tavares, o resto é paisagem. Minimalista. Será que basta uma andorinha para fazer a primavera?! 

Mas o editorialista Manuel Carvalho não é de modas e resolveu aprofundar (e bem) o problema, considerando-o, apesar de tudo (e mal), uma história de não sucesso. Exigem-se portanto algumas precisões. 

Velho conhecedor dos assuntos do Côa e da região do Douro, não se deixou embalar pela história (típica de um jornalismo preguiçoso) do número de visitantes e das guerras que já foram "gravuras versus barragem". Não questionando, antes reafirmando, o valor intrínseco da arte rupestre e da sua classificação pela Unesco, a todos, guardiões deste património, nos invectiva e...  injustamente acusa. 
É que não fomos nós, arqueólogos, que afastámos os visitantes! Foram antes os tais "poderes públicos" que invoca, que não criaram condições para termos mais visitantes. Se o museu do Louvre expusesse a Mona Lisa junto à pirâmide da fachada teria muitos mais visitantes! E é isso que interessa?
 
É que parece não basta dizermos que há anos tudo parou no Côa. Que estamos, longe de tudo, no interior mais fundo de Portugal. Ou que fomos deixados à sorte pelos últimos governos da nação. Ou que isto parece ser "o elefante branco do PS". Ou que o Parque Arqueológico há mais de 6 anos que não tem sequer orçamento próprio! Ou que o CNART foi extinto há quase 2 anos. E que nem migalhas sobram. Centros de Interpretação in loco, piqueniques no Côa, circuitos pedestres? Tudo isso está óptimo (e o Parque algumas dessas coisas foi fazendo), mas não com gravuras em fundo sob o alto patrocínio dos poderes públicos. A ser assim e sem uma conveniente guardaria, impossível em todo o vale, as gravuras estariam hoje sobrepostas por rabiscos, nomes e datas. O habitual!  Já foi a Siega Verde ver como ficou a arte paleolítica antes da vedação recente do sítio (mais de meio quilómetro de rio)? Saberá que em Lascaux nos anos 50 até casamentos se realizaram no interior da gruta? Hoje está fechada ao público... para sempre! Da mesma forma que Altamira. E Chauvet, que o governo francês decretou nunca seja aberta ao público por, como nas outras grutas, ter graves problemas de conservação. Cito-lhe apenas os 3 casos mais exemplares, porque são o supra-sumo da arte pintada paleolítica. E muitas vezes se diz que Altamira é visitada por mais de 200.000 pessoas. Falso. Essas pessoas todas não vêem mais que um museu e um tecto falso. Na gruta não entram mais de 20 pessoas/semana. Portanto, Foz Côa é um caso de insucesso por não carrear para a região centenas de milhares de visitantes!!?? Coisa que, evidentemente, aconteceria com a barragem do Baixo Côa, o que até nem MC acredita. Isto é tudo tão relativo!

Veja como somos ingratos com as nossa próprias coisas. O museu de Altamira é inaugurado mais de 120 anos após a descoberta da gruta. O museu do Côa será inaugurado 15 anos após a revelação das gravuras. Siega Verde, em Espanha, descoberta em meados dos anos 80, espera que se construa o museu do Côa para atrair visitantes. Tem neste momento menos de 4.000/ano e já há anos que tem no sítio um Centro de Interpretação. Foz Côa, na mesma região, chega aos 20.000, mais outros tantos que não chegam a ver as gravuras, por não terem reservado visita. 
E já agora, porque não dizermos que responsáveis da Unesco nos apontaram em tempos como modelo de salvaguarda de sítios rupestres de ar livre? 

Há de facto uma enorme responsabilidade social na criação do PAVC, não por se ter contestado uma barragem, mas porque nos caiu em cima a responsabilidade de estudarmos e valorizarmos o mais emblemático sítio arqueológico de Portugal, que é o Vale do Côa. Onde há muito nada se investe, a não ser o esforço dos que aqui continuam.
 
Ora, há evidentemente culpas partilhadas e o Parque Arqueológico do Vale do Côa paga ainda hoje o divórcio instalado a partir da sua criação com alguma população local. Mas muito se fez nos últimos anos para inverter esta situação. Mas onde falta pão...

E, meu caro Manuel Carvalho, acha mesmo que as gravuras "são feias"? Ou é apenas uma figura de estilo?

Como já tenho dito e redito, temos hoje que ser pragmáticos nestas questões do património e do turismo. E, no que dou razão aos nossos críticos, no mundo actual não há forma de continuarmos a manter o actual sistema de visitas por muito mais tempo. É um modelo que se esgotou, mas que foi muito útil nos primeiros anos de criação do Parque. Será isto que contribuirá para que a história da barragem do Côa entre definitivamente na pasta dos assuntos arquivados nos escaninhos da história. É que nem o museu bastará. Outros assuntos virão à tona. Esta história parece que só parará quando se descobrir a fusão a frio!!

E, mais uma vez, lanço um desafio aos nossos jornalistas: vão a Vila Velha de Ródão, a menos de 200 quilómetros de Lisboa, e interroguem-se e escrevam do que ganhou turística e economicamente aquela região com a construção da barragem de Fratel e o afundamento do complexo de arte rupestre holocénica do Vale do Tejo?! Que nem sequer merece a dignidade de ser considerado Monumento Nacional porque... está submerso no coração da região com a mais envelhecida população da Europa!! É o país, meus senhores, é o país...

sábado, 29 de novembro de 2008

Vandalismo rupestre 02 - Fraga do Gato


A Fraga do Gato, em Poiares (Freixo de Espada-à-Cinta), ladeando a calçada de Alpajares, é um dos raríssimos exemplos europeus de arte paleolítica de ar livre que se conservou até aos nossos dias. O paredão vertical, resguardado num pequeno abrigo sob-rocha entalado nos xistos, ostenta duas figuras com uma originalíssima temática no contexto da arte pré-histórica europeia: um bufo pequeno pintado a negro, e um provável mustelídeo (lontra?) pintado a vermelho.  
Localiza-se numa zona de grande e esmagadora beleza paisagística, anichada na monumentalidade do Douro, em sítio hoje relativamente acessível.
 
A primeira vez que visitei o local (nunca monografado e que publicarei no meu próximo livro), na companhia de Mário Varela Gomes e do saudoso António Beltrán, todos ficámos surpreendidos pelo ineditismo das figurações que ainda se deixavam apreciar relativamente bem. 
Posteriormente e no sentido de salvaguardar o registo arqueológico das pinturas, realizámos o levantamento do painel com uma equipa do extinto Centro Nacional de Arte Rupestre. Há poucos anos atrás, tentei, com André Santos e Domingos Cruz, colher amostras da pintura a negro para uma datação OSL, mas não restava já qualquer resíduo orgânico que o permitisse, estando o paredão pintado muito lavado. 
Entretanto visitei o local em outras ocasiões e de cada vez que por lá peregrino, como na passada quinta-feira, sente-se a degradação continuada deste notabilíssimo sítio rupestre, com mais umas pedradas atiradas por gente ignorante (só pode ser!) e mais uns quantos riscos que se vão acrescentando, delapidando o painel pintado. E é lamentável que assim suceda, pois é uma das mais originais estações da nossa arte rupestre de ar livre e um exemplo raro pelo tipo de motivos que ostenta.

Portugal nunca adoptou o modelo espanhol de resguardo deste tipo de abrigos pintados com selagem por gradeamentos ou até limitando os acessos através de um qualquer sistema de guardaria. Se por um lado os gradeamentos desfiguram os enquadramentos dos sítios, por outro, quando não haja guardaria dedicada, as grades não impedem o vandalismo do apedrejamento, como o que aqui acontece. E não há aliás outra forma de salvaguardar sítios com estas características que não o da cultura cívica dos visitantes ou dos passantes. E isso aqui não se tem verificado. A não divulgação dos sítios é um modelo que também não está de acordo com os tempos que correm, nem isso se poderá defender ad infinitum. Resta-nos esperar que o civismo impere e se torne uma norma da nossa convivialidade com estes monumentos do passado remoto.




Fotos: AMB. Desenho: Fernando Barbosa/CNART

Para uma crisologia em tempos interessantes

Público, 28 Nov. 2008

Benigna reflexão do ex-ministro Campos e Cunha, ao encontro do que muitos de nós pugnam, quais vozes pregando no deserto. E que remete antes de mais para o papel político da Cultura, dramaticamente menorizada numa época de megalomania e voluntarismo financeiros, como parece ser o exemplo do "monstro do TGV" que, como é facilmente perceptível, sai fora (e de que maneira) do princípio da sustentabilidade aqui defendido. Princípio que tão bem se aplica ao Vale do Côa, uma pérola apesar de tudo em fase de lapidação, pese embora aqui continuem a faltar algumas das "ferramentas" do progresso. 

O abandono e/ou o não aproveitamento científico-turístico de muitas das nossas jazidas arqueológicas é, também ele, um problema de mentalidade. Uma forma de estar. E claro que também das políticas orçamentais. Por isso sempre recusei o argumento "de que não há dinheiro"! Porque ele existe. Está é fora de sítio.

Repare-se que a maior parte das nossas grandes descobertas arqueológicas não se devem a projectos consistentes e de raiz, mas só são reveladas e estudadas (quantas vezes nem isso) perante as ameaças de uma ou outra grande obra pública, seja ela uma barragem, uma auto-estrada, a conduta do gás, ou... o TGV. Consequentemente, a valorização desses sítios fica desde logo diminuída e também ela ameaçada, quantas vezes apenas memorizada em singulares e pobres (porque descontextualizados) "centros de interpretação" ou "casas da memória". O caso da Arte do Côa é verdadeiramente uma excepção - o mesmo não aconteceu infelizmente com a Arte do Tejo na região de Fratel -, mas o seu salvamento, embora tarde em ser verdadeiramente exponenciado nos termos em que Santos e Cunha aqui escreve, foi, apesar de tudo, feito. E com isso enriqueceu a região e o país.
  
Mas Portugal nunca produziu uma verdadeira carta arqueológica nacional. Em 1995, durante um debate no Instituto Superior Técnico em que participava com engenheiros a propósito do problema da barragem de Foz Côa, um desses engenheiros questionava-se (incrédulo) porque não teria até então o país elaborado uma carta arqueológica que prevenisse problemas e situações como a que estava a acontecer no Côa. Como tinha uma carta de solos, uma carta ecológica, uma carta geológica (mais de um século a completar)... Pois se até anos recentes nem um verdadeiro curso de arqueologia havia. E a arqueologia foi sempre em Portugal (pelo menos até há pouco) uma espécie de ciência menor que tanto podia ser experienciada por médicos, engenheiros, economistas, advogados e até... historiadores. Honrosas profissões liberais que na arqueologia encontravam um escape.

Pensamentos que explicam bem porque tão cedo o ex-ministro Campos e Cunha abandonou o barco de um governo de maioria absoluta. Os ventos, nestes tempos interessantes (para usar a expressão de Hobsbawm), não sopram de facto tanto ao encontro dos esteios da sustentabilidade quanto para os da insensatez financeira e da desmemória...

Arte do Côa Património da Humanidade - 10 anos


Os números redondos apelam à comemoração! E pesem embora os tempos de aguda crise financeira, há 10 anos que a Arte do Côa foi considerada Património da Humanidade e a data justifica mais uma comemoração. Que deve ser motivo de orgulho para a região e para Portugal.
Entre 2 de Dezembro e 15 de Janeiro, um lote de actos, entre o simbólico e o pragmático e que se pretendem também eles memória para futuro, lembram ao passante este facto tão singelo quanto significativo: as maravilhas do Côa fazem parte da memória mais preciosa da Humanidade. 

Cabeça de cavalo Magdalenense da rocha 3 da Ribeira de Piscos. Foto: AMB/MA

Com uma ressalva a este cartaz. O meu próximo livro aqui anunciado como a ser lançado a 13 de Dezembro, só o será efectivamente a 20. E posso dizer-vos que está cheio de novidades. Foi a sua preparação que me manteve por algum tempo afastado deste espaço bloguista...

quarta-feira, 19 de novembro de 2008

A fala da ex-Ministra

Público 19.Nov.2008

Depois do ministro (último Expresso), a ex-ministra. E a tese explica-se em duas linhas: é preciso alargar as competências do Ministério da Cultura, anexando-lhe o Turismo, e não extingui-lo, como alguns propõem (Walter Rossa, no caso), face à sua insignificância orçamental cada vez mais ridícula - é o termo.
Por uma vez concordo. Por natureza, desde os tempos em que contribuía para conter o pouco criterioso turismo verde da Peneda-Gerês (introdução de portagens na Mata de Albergaria, vedação de acessos às zonas mais elevadas e de reserva da serra do Gerês...), sou um desconfiado das virtudes do turismo "tout court". Mas nos mais de 35 anos que levo de envolvimento nas problemáticas arqueológicas em Portugal, reconheço que sem turismo não há salvaguarda do património que resista... 
É isto suficiente para que o Ministério da Cultura anexe competências alargadas na área do Turismo a ponto de considerarmos a criação de um Ministério da Cultura e Turismo? É! Caso contrário estaremos (militantes do património em geral) condenados ao insucesso. E perante os problemas do mundo actual exige-se pragmatismo.

O caso do Vale do Côa é paradigmático a este respeito. Contribui, e assim continuo, para a salvaguarda da arte do Côa e para a sua conservação no interior de uma área classificada como Parque Arqueológico, que quando foi criada não tinha sequer suporte legal a enquadrá-la. Passados estes anos, guerra ganha por entre uma que outra batalha menos bem perdida, parece termos caído num impasse, já que o turismo é por (quase) todos apontado como a "salvação" dos sítios arqueológicos. Não é bem assim, mas quase. Se continuarmos (e parece que assim será) limitados às benesses de um estado centralista e macrocéfalo como o que agora temos, longe de uma certa regionalização que os políticos temem e teimam em esquecer, então que seja o turismo a bóia de salvação. Mas gerido por agentes da cultura!

Mas pergunto: que fazem os responsáveis políticos quando detentores do poder? Parece que se limitam a geri-lo, reestruturando, reestruturando...  sem fim à vista...

sábado, 15 de novembro de 2008

Vale do Côa Outonal


Longe já o bulício e as quenturas do veraneio, quem, aproveitando estes frios mas solarengos dias outonais, tiver a oportunidade de visitar as gravuras paleolíticas da Penascosa, vai também poder apreciar a lenta glória da desfolhagem da Ervamoira, colhido que foi o fruto das vides, que agora se transmutam em castanhos sublimes. 
Instalado o Outono, é esta a mais bela estação no Vale do Côa, sublinhando o cromatismo das paisagens...





Fotos: AMB
Nov'08

A fala do Ministro: "Ministério da Cultura não tem credibilidade"!





Bom, se é o ministro que o diz, quem sou eu para o desmentir?! 
Mas valerá a pena lembramos que a decisão política de construir o museu do Côa na sua actual implantação tem pouco mais de 5 anos e é do ex-ministro Roseta. E que a primeira pedra foi lançada nos últimos dias de Janeiro de 2007 pela ex-ministra Pires de Lima. Que logo depois se encarregaria de desmantelar o Instituto Português de Arqueologia e extinguir o Centro Nacional de Arte Rupestre. E que agora atira esta pérola ao seu sucessor, afinal ministro da mesma pasta, na mesma legislatura e do mesmo governo...

domingo, 12 de outubro de 2008

Vandalismo rupestre 01 - Veado do Vale do Sabor

O precioso vale do Sabor na zona do Cabeço do Aguilhão

Em 19 de Outubro do ano 2000 tinha, com uma equipa do então Centro Nacional de Arte Rupestre, identificado esta rocha gravada com arte pós-glaciar, no Vale do Sabor, perto do sítio conhecido como Cabeço do Aguilhão.

Não sendo um sítio ameaçado e estando a minha equipa absorvida pelos trabalhos no Guadiana (Alqueva), realizei o seu estudo cerca de três anos depois, num momento em que se identificaram e estudaram outras rochas gravadas na mesma zona do rio, perto do santuário de Santo Antão da Barca (todas pós-glaciares).

Infelizmente e pese embora não se divulguem as coordenadas destes achados avulsos, não será difícil, ainda que a olhares menos experimentados, redescobrir (e vandalizar se for caso disso) estes sítios, isolados e não protegidos, que guardam alguns dos mais interessantes vestígios da imagética do nosso passado pré-histórico.


Foto: P.Couteiro

Claro que o vandalismo é intencional, um pobre híbrido zoomórfico, mal picotado e intencionalmente sobreposto ao cervídeo em estilo tardo-neolítico/calcolítico.
Uma consequência das polémicas que envolvem a construção de mais uma barragem? Quase seguramente, mas antes de mais uma prova da irremediável ignorância e incultura que grassa no "país real".
 

Aspectos do levantamento da r. 1 do Cabeço do Aguilhão



Uma segunda rocha com um equídeo picotado, foi então detectada e estudada junto ao já conhecido painel do cervídeo:
Claro que haverá novas rochas com arte rupestre no Vale do Sabor, até porque o vale nunca foi objecto de prospecções especializadas em arte pré-histórica... E, entretanto, o CNART foi extinto...

Fotos: AMB/Manuel Almeida/CNART
Desenhos: Fernando Barbosa/CNART

Os mortos que mais rendem. Arte rupestre e capitalismo no Vale do Côa

No P2 do jornal Público de hoje e segundo o The Guardian, há uma curiosa lista estatística dos dez mortos que mais rendem neste mundo globalizado, e que aqui insiro:

O que me suscita a seguinte reflexão:
Porque rendem tanto estes mortos e tão pouco a herança dos nossos mortos paleolíticos e anexos?
Repare-se: tudo bebe da imagem, da "obra" e seus direitos, e da sua utilização numa "imensa panóplia" de tantas inutilidades, mas que o povão gosta!
Ora o Vale do Côa é já um objecto de desejo, primeiro ponto a ter em conta, e é a nossa melhor herança pré-histórica e uma mina por explorar a este nível, já que aqui até os bilhetes de entrada nos sítios continuam bonificados. E tudo continua objecto de uma espécie de "socialismo de estado", do trabalho mal pago aos direitos de imagem que não se cobram. 
Porque enquanto deixarmos descapitalizar, quer as nossas próprias imagens, quer as notáveis figurações rupestres que vamos captando em desenho ou fotografia, apenas conseguiremos entrar no ranking dos menos rentáveis, dos papalvos do sistema.
Existe uma lei de direitos de autor e direitos conexos em Portugal, mas é o próprio Estado que não lhe liga, perdendo de caminho um ror de dinheiros que parece ser hoje o que mais atormenta os estados e nos vai empobrecendo no dia-a-dia.
Se de início se pensava que a divulgação das imagens rupestres do Côa servia os propósitos de salvamento e divulgação dos sítios, há muito que essa etapa está ultrapassada. E são os governos que hoje nos incitam à imaginação a benefício da sobrevivência de empregos e manutenção do bem-estar (a tal coisa que o ministro Pinho decretou ter terminado!). 
Por quanto tempo mais vamos continuar a deixar banalizar as imagens do Côa sem o conveniente retorno, para utilizar a gíria dos economistas? Estou certo que se uma empresa privada iniciar um dia a exploração dos sítios e/ou do futuro Museu do Côa (nunca se sabe se lá chegaremos e talvez não venha longe o dia), logo esta situação se alterará... 
É que, da mesma forma que Elvis Presley, também o Côa "revolucionou tudo" no pequeno mundo da nossa arqueologia, mas também no grande universo da arte paleolítica. Mas há lições que tardam a ser levadas à prática. Mesmo em tempo de aguda crise.

sábado, 11 de outubro de 2008

Obras-Primas da Arte do Côa 04 - Placa da Idade do Ferro do Paço (Vila Nova de Foz Côa)



Esta peça é uma pequena maravilha e será um dos raros originais a integrar as colecções visitáveis do futuro Museu do Côa. Porque é o primeiro exemplar (e até agora único), aparentemente de arte móvel da IIª Idade do Ferro, até hoje identificado no Vale do Côa. Foi encontrado há poucos anos no sítio do Paço, muito perto de Vila Nova de Foz Côa e manteve-se até hoje inédito. A pedra deveria ter estado com a face gravada enterrada por muitos anos, daí o excelente estado de conservação das gravuras, todas obtidas por incisão, na maioria das figuras bem aprofundada.

É uma pequena placa de xisto acastanhado, com menos de dois palmos de largura, achada à superfície, num contexto com cerâmicas de época romana (comuns e sigilatas). O sítio está perto de algumas das grandes estações de arte rupestre da Idade do Ferro na zona da foz do Côa. A placa era de maiores dimensões, pois há uma série de figuras cortadas por fractura, quer na parte direita, quer na zona inferior. Está gravada apenas numa das faces da laje. Também poderia pertencer a um painel rupestre, mas o tipo de lascagem leva-me mais a considerar esta peça como uma placa de arte móvel, tipo ex-voto, o que faz dela uma novidade absoluta no contexto do Côa. Infelizmente, não há sítios da Idade do Ferro escavados na região... 

Nela se contém uma síntese da nossa arte da Idade do Ferro, como se sabe o segundo mais importante ciclo artístico do Vale do Côa/Alto Douro. Guerreiros, montados sem sela, em cavalos conduzidos por arreios ziguezagueantes e aparentemente sem freios, com o armamento típico da IIª Idade do Ferro: lanças ou dardos longos, um pequeno escudo redondo, idêntico ao modelo em madeira descrito por Estrabão para os Lusitanos e um aparente machete ? (um percursor da falcata, na figura inferior). É muitíssimo interessante o modelado interno dos cavalos, idêntico ao exemplar da rocha 6 de Vale do Forno, junto a um guerreiro apeado. A figura inferior direita poderia estar em pé sobre um cavalo, infelizmente quase inteiramente desaparecido.

Um aspecto interessante nestas formas humanas é a sua tipologia com a ausência das clássicas cabeças em bico de pássaro, aproximando-se estas mais dos antropomorfos do sítio do Vale da Casa ou Vale de Canivães.
A tipologia destas figuras poderá ser cronologicamente anterior à dos humanos com cabeças em forma de bico de pássaro. Porém a arte do Ferro está em grande parte por estudar.

Mas uma das mais interessantes figurações desta placa é sem dúvida a de um canídeo montado no dorso de um outro (assim identificado pelo tipo de cauda), tocando-se as bocas. A figura maior parece ter duas cabeças, mas isso também se poderá dever à forma do modelado interno. Mas não se descarta a hipótese de estarmos perante uma representação bicéfala de carácter mitológico, como aliás o será toda a decoração desta notável peça da Idade do Ferro do Baixo Côa.

Fotos: Manuel Almeida (CNART)
Desenho: Fernando Barbosa (CNART)

sexta-feira, 10 de outubro de 2008

Centro Nacional de Arte Rupestre (CNART). Dafinitudedotempo


O homem e a espiral. Extracto de um belo painel da rocha 72 do Cachão do Algarve, no Vale do Tejo (Vila Velha de Ródão). Na altura (1997), optámos por este símbolo e não por uma inevitável gravura do Côa, como a que evidentemente fora escolhida para símbolo do Parque Arqueológico do Vale do Côa. Até para conceder ao CNART, estanciado em Foz Côa, a dimensão nacional que todos desejávamos tivesse. E que só episodicamente aflorou.
Na aliança entre o homem e a espiral se conjugavam as origens e a temporalidade da vida. A espiral é, mais do que o círculo, um símbolo do absoluto e do eterno retorno, onde tudo se contém e nada se conserva, onde tudo se transporta e transforma em perpétua reorganização. Chegámos na altura a pensar na aliança simbólica entre o homem e o sol, de que há também pelo menos três imaginativos exemplares no Vale do Tejo, os únicos evidentes em território português. Mas era mais redutor...

E na espiral nos remirámos em perpétuo movimento por 10 curtos, curtos anos! Consequência evidente da batalha do Côa, Portugal era um dos únicos estados europeus que criara um serviço unicamente devotado ao estudo, salvaguarda e divulgação da sua arte rupestre. Pousadas as armas pelo Côa e embora a arte rupestre tenha em Portugal ganho foros de extrema honorabilidade arqueológica, ao primeiro sinal de crise o CNART é desclassificado e eufemisticamente (re)integrado na modorra administrativa, centralista e tentacular tão típica da maneira de ser português. Os tempos estão difíceis, tudo é posto em causa, o tempo é dos contabilistas... 

O Estado Português trata mal dos seus funcionários! Sem uma justificação, sem um resmungo, um lamento ou um agradecimento pelos serviços prestados, ou até um raspanete pelos não prestados, o Estado Português, pela mão do governo em exercício, extinguiu o CNART em 30 de Abril de 2007. Porquê? perguntar-se-á... Bom, de acordo com o não dito, parece que a coisa passa pela racionalização de serviços (mas não... irá talvez para além disso!), extinguindo-se aqui, parece, o mais pobre dos serviços públicos do Estado Português, que tinha na altura um orçamento (aliás, já nem isso tinha, como o próprio PAVC!) quase ao nível de algumas das reformas mensais que o mesmo EP paga a serventuários com uma dúzia de anos de bons e leais serviços (presume-se)! Passado o período de nojo, é chegado o tempo de balanço...

Antes até de inaugurado, o CNART diluiu-se nas brumas da memória. 9 anos de luta por uma sede e no momento em que tal se consegue (obrigado, administração local), morre o serviço, mas não a motivação pela defesa da nossa arte rupestre!

A memória do CNART está por ora no Vale do Côa, no seu Parque Arqueológico de futuro tão incerto como a crise dos especuladores financeiros que hoje assola o tempo das globalizações. 





segunda-feira, 1 de setembro de 2008

Para além do Vale do Côa: Arte Paleolítica de ar livre em Portugal - 01 Vale do Ocreza


Para além do Vale do Côa... há no território português pelo menos dez outros sítios com gravuras e pinturas de arte paleolítica de ar livre. Todos se localizam em vales fluviais da zona mais a ocidente da Meseta, desde o Alto Sabor (com pelo menos 4 sítios) ao Guadiana. E se nem todos apresentam uma mesma uniformidade de estilo, todos têm um certo ar de família, o que lhes concede uma singular homogeneidade artística e me leva a considerá-los como fazendo parte, no seu todo, do nosso mais arcaico "império artístico", de plena idade glaciar e que há que valorizar como um todo. E a identificação ao longo dos últimos anos de todos estes sítios que, excepto o Mazouco, o foram após a batalha do Côa, assinala um dos mais interessantes episódios da nossa arqueologia da viragem do milénio. Afinal o reconhecimento da arte paleolítica de ar livre na Europa ocidental é também ele um dos mais assinaláveis fenómenos da arqueologia europeia das últimas décadas. Ainda para mais, a imensa maioria de todos estes sítios localiza-se na Península Ibérica, sendo o Vale do Côa o seu lugar cimeiro.

Por todas estas razões, será de toda a justiça que num futuro próximo, Portugal solicite a sua classificação em bloco como Património da Humanidade, na categoria de "extensão do Vale do Côa", como já afirmei na minha última postagem. Basta que o país se interesse por isso.

Conhecidas, entretanto, as condições de jazida deste tipo de sítios, sempre em rochas xistosas e em vales encaixados, calculo que muitos mais haverá por identificar, especialmente sob as águas das nossas principais barragens, em particular as do vale do Douro e da Beira interior. Por razões óbvias, uma tarefa para as gerações vindouras!

Vai para três anos fiz uma sistematização de (quase) todos estes sítios para um Atlas da arte paleolítica peninsular que, sob a coordenação de J. Fortea, será publicado em Espanha. Infelizmente, tarda esta publicação, o que faz destes destes sítios locais ainda pouco divulgados, mesmo entre a comunidade arqueológica. Enquanto se aguarda a sua (já desactualizada) publicação, irei apresentá-los, ainda que sumariamente, neste espaço. E começarei pelo cavalo isolado do Ocreza, que foi identificado por uma equipa do então Centro Nacional de Arte Rupestre em Setembro do ano 2000 (AMB/Fernando Barbosa/Manuel Almeida/João Félix). 

O baixo vale do Ocreza mantém um troço de rio (pouco + de 2 quilómetros) livre da influência de barragens entre o sítio de implantação da barragem de Pracana e a sua foz no Tejo, um pouco a jusante da estação de arte rupestre de Gardete. Nesta zona, o Ocreza serve de fronteira entre os municípios de Mação e de Vila Velha de Ródão.
Este percurso final do Ocreza é um vale fundo e encaixado, rasgado nos xistos que marcam toda a geomorfologia regional. 
Já em 1973 tinha feito aqui prospecções rupestres (com Maria Manuela Martins, Vítor Serrão e Mário Varela Gomes), no âmbito da sistematização espacial do Complexo de Arte Rupestre do Vale do Tejo e tínhamos então identificado algumas rochas historiadas com arte esquemática. Este troço de rio passou mesmo a assinalar desde então um dos limites do CARVT. Vá lá saber-se porquê, esta pequena rocha a todos passou então despercebida! E só seria revelada na campanha do CNART de Setembro de 2000, uma rápida prospecção realizada a pedido de L. Oosterbeck na iminência da construção de uma das pontes da A-23, que ficou quase sobranceira ao sítio.
 
Ao contrário das grandes estações rupestres do Tejo (Fratel, Cachão do Algarve, S. Simão...), com uma grande concentração de gravuras nos mesmos sítios, no Ocreza as rochas gravadas são em menor número, mesmo com poucas gravuras por painel, e estão dispersas ao longo da margem direita daquele último troço de rio entre o paredão da barragem e a foz. Entre as suas rochas decoradas destacam-se algumas espirais, poucos motivos esquemáticos antropomórficos, um grupo de 2 zoomorfos onde se destaca o grande e inestético híbrido num afloramento solto na última curva de rio e que tem sido divulgado em desenho incompleto; e muito em especial, o único painel com uma gravura claramente paleolítica conhecida em todo o ciclo rupestre do Vale do Tejo.

É uma pequena rocha patinada em tons de azul, muito lisa e onde se destaca claramente este equídeo virado a montante, obtido através de uma picotagem funda e vigorosa. O animal tem uma cabeça aparentemente incompleta, jogando com a própria forma da rocha, o que é muito próprio aos cânones da arte paleolítica. Em estilo de um naturalismo simples, em perfil absoluto, com uma cérvico-dorsal muito acentuada e uma perna por par, é uma gravura que poderia ter sido realizada por um "emigrado" do Côa, um dos seus "iniciados" pesquisadores de sílex... Pois o motivo enquadra-se totalmente nos padrões estilísticos e técnicos da fase arcaica do Côa (tem também bons paralelos num cavalo do Escoural), o que me levou a propor uma cronologia muito recuada para esta gravura (período Gravetto-Solutrense), sem paralelo em qualquer uma das gravuras conhecidas no grande complexo do Vale do Tejo, onde geograficamente se insere.
Por outro lado, a sua localização espacial em painel destacado entre duas curvas do Ocreza e o facto de ser um motivo singular em toda a região, leva-me também à conclusão que é uma gravura com aparente sentido topográfico, uma "marca" (de caça? étnica? tribal? totémica?...) cujo significado evidentemente se perdeu.
Em conclusão, este singular cavalo do Ocreza, que terá sido feito há mais de 20.000 anos, é a mais antiga gravura entre os cerca de 40.000 motivos do complexo rupestre do Tejo. E um dos mais importantes da arte rupestre do Portugal central.

Para saber mais:

BAPTISTA, A.M. (2001): Ocreza (Evendos, Mação, Portugal Central). Um novo sítio com arte paleolítica de ar livre. in CRUZ, A.R. e OOSTERBEEK, L., Territórios, mobilidade e povoamento no Alto Ribatejo II - Santa Cita e o quaternário da região, Tomar, CEIPHAR [Arkeos, 11], p. 163-192.

O cavalo do Ocreza sobressaindo por entre um caos de xistos


Note-se o fino ponteado da parte inferior da cabeça que não foi aprofundado. O pequeno traço no interior do corpo do equídeo poderá representar um "sinal"

Pormenor da perna dianteira. Observe-se o "negativo" das pancadas do percutor, visível porque o traço não foi polido por percussão, mas por lavagem erosiva.

Primeiras visitas organizadas ao cavalo do Ocreza.

Fotografias: AMB
Desenhos: Fernando Barbosa/AMB

sexta-feira, 29 de agosto de 2008

Arte Paleolítica recentemente classificada Património Mundial pela UNESCO

Um grupo de dezassete grutas da região cantábrica (Norte de Espanha) decoradas com arte paleolítica, foram, em 8 de Julho passado, inscritas pela Unesco (32ª sessão do Comité do Património Mundial) na lista do Património Mundial, de acordo com os critérios (i) e (iii) desta organização. 
De acordo com os critérios já utilizados para os sítios de Arte Levantina peninsular, estas grutas foram classificadas como uma "extensão" de Altamira, classificada desde 1985 e que doravante aparecerá na lista do Património Mundial como "Gruta de Altamira e Grutas com Arte Paleolítica do Norte de Espanha" ( http://whc.unesco.org/en/list/310 ).
As novas grutas agora inscritas são: Peña de Candamo, Tito Bustillo, Cavaciella, Llonín, El Pindal, Chufín, Hornos de la Peña, El Castillo, Las Monedas, La Pasiega e Las Chimeneas (estas 4 no Monte Castillo), El Pendo, La Garma (uma absoluta preciosidade!), Covalanas, Santimamiñe, Ekain (uma jóia no País Basco) e Altxerri.

É um processo semelhante o que se está a propor à Unesco para classificar o sítio de ar livre de Siega Verde como uma extensão do Vale do Côa. E que de futuro poderá eventualmente estender-se aos sítios com arte paleolítica do Vale do Sabor (Ribeira da Sardinha, Pousadouro, Sampaio e Pedra Escrevida), do Vale do Douro (Mazouco), do Vale do Zêzere (Poço do Caldeirão e Costalta) e do Vale do Ocreza, já que todos eles guardam gravuras cronologicamente enquadráveis na fase antiga da Arte do Côa (período Gravetto-Solutrense). E todos eles se constituem, com o Vale do Côa, como parte do "nosso" primeiro império artístico!

A lista do Património Mundial conta presentemente com 878 sítios inscritos, dos quais 679 são património cultural, 174 como património natural e 25 mistos. Tudo distribuído por 145 países.

quinta-feira, 28 de agosto de 2008

Álbum histórico do Vale do Tejo 03 - Um artigo de Veiga Ferreira


Não são fotografias que hoje trago à colação, mas um curiosíssimo artigo de O. da Veiga Ferreira, perdido numa revisteca dos últimos dias do Estado Novo, que hoje é uma curiosidade também ela já arqueológica.

Não houve, aquando do anúncio da descoberta e primeiros estudos das gravuras holocénicas do Vale do Tejo, nenhuma polémica ou qualquer veleidade de salvamento das mesmas, antes se antevia do seu inevitável afundamento sob as águas da barragem de Fratel, o que viria a acontecer no ano da grande Abrilada.

Mas tivemos as nossas polémicas caseiras. E uma delas foi com o impagável O. da Veiga (como então carinhosa e jocosamente se dizia!) que, titulando-se um "prático de geologia" e forte das suas centenas de artigos sobre tudo e mais alguma coisa do mundo arqueológico português, resolveu questionar da antiguidade pré-histórica da Arte do Tejo, nomeadamente do grande sítio de Fratel onde está a famosa rocha F-155. Pois uma sua visita a Fratel e certamente com a frustração de ter talvez peregrinado anteriormente pelas margens do Tejo e nada ter registado com interesse rupestre, levou-o a perorar de cátedra e assim elucidar os "jovens" ingénuos que eram o então grupo de estudantes que descobrira as gravuras, mai'lo seu testa de ferro institucional que era o Dr. Eduardo da Cunha Serrão! A quem todos chamávamos "o Doutor". E vá de escrever este "histórico" artigo onde, apesar de tudo, concede a dignidade neolítica a um painel (era a rocha 72 de Fratel) e em tudo o resto só via corações, datas, nomes, cabras e carneiros!! obrinhas de pastores modernos, ainda assim talentosos, já que alguns desses motivos eram desenhados à maneira pré-histórica! E, fantástica sugestão, até alvitrava que esses pastores tinham utilizado como objectos incisores os tirefondes que iam caindo das linhas de caminho de ferro da Beira Baixa, que passava sobranceira ao vale naquela zona da margem direita do Tejo! Uns tirefondes semelhantes aos que uns miúdos escolares andaram há dias a colher na trágica linha do Tua para gáudio televisivo!

Na altura escrevi um texto jocoso sobre esta tonteria do Veiga Ferreira, mas, não publicado, perdi-lhe o rasto. Recordo-me que lhe chamei "A carga dos tirefondes!" e o título é tudo o que dele resta... Passados anos, num encontro fortuito com Veiga Ferreira nas antigas instalações da então Direcção-Geral do Património e já depois de afundadas as gravuras e publicada uma série de artigos sobre a Arte do Tejo, que então era o nosso mais importante repositório rupestre pré-histórico, ainda o inquiri sobre se consideraria aqueles motivos como todosde factura moderna!? E não é que ele me disse que sim!! Claro que por esses dias, Veiga Ferreira andava a publicar artigos em revistas de muito duvidosa credibilidade, anunciando ovnis entre as pinturas e gravuras das grutas paleolíticas da Franco-Cantábria! 
Não sei se Veiga Ferreira morreu com a dúvida metódica sobre a Arte do Tejo, e não deixa de ser curioso o seu paralelismo por exemplo com R. Bednarik que ainda hoje continua a afirmar que as gravuras do Côa foram feitas por moleiros, talvez em época romana! "Ele há malta para tudo", como diria o saudoso Cunha Serrão! 

Para a história do Arte do Tejo e do estranho mundo da arqueologia rupestre em Portugal, aqui fica arquivado, de O. da Veiga Ferreira, "Acerca das chamadas "gravuras rupestres" de Fratel (Portas de Ródão)", in Dolmen, 1, 1973, pp 15-16. Para além, das "teses" defendidas, repare-se na prosa ligeira de OVF, também ela tão típica de um tempo e de uma época da arqueologia portuguesa



Um desencantado apelo à revolta no Douro

in Público, 27 Agosto 2008

Claro que Gaspar Martins Pereira não nos pede que choremos! Ou que apenas lamentemos as incúrias e os malefícios do centralismo, as perversões democráticas, as mediocridades reinantes, ou que denunciemos mais um qualquer jogo de interesses na voragem política do momento. Para mim, o seu artigo é antes um grito d'alma de alguém que já não acredita e por isso formula... um grito de revolta! Sem mais. Apoiado!

Levamos séculos de lamentos, a prazo há sempre alguém que vai anunciando que o país não é viável, mas lá se vai andando. Quando hoje me deliciava, ainda e sempre, com a mais rija prosa em português vernáculo que é a do alentejano Fialho de Almeida, eis que, palavras postas na garganta de um cruento e imaginário D. Carlos de Bragança, vergado ainda ao peso do ceptro e do arminho, tropeço nesta pérola: "Aos que pois me lançam em rosto a dinastia mórbida de D. João IV e descendentes, contraporei essoutras de políticos inábeis, de gentis-homens cínicos, de burguesia sorna e de plebe sem vergonha, que é a história da sociedade portuguesa de há trezentos anos para cá. Povos e reis, podemo-nos dar as mãos pelo conjunto homogéneo que fazemos, repartir quinhões iguais na glória de havermos feito deste rectângulo de paisagem um dos manicómios mais típicos da degenerescência humana em desfilada prá demência" (Os Gatos, Vol. 17). Bom, eu não chego a tanto, mas lá que apetece, isso apetece!!

Dizia Ramalho Ortigão, em diatribe anti-republicana referindo-se à gestão de uma das democracias parlamentares que então nos servia de modelo (a França), que nela só havia dois partidos: o dos "satisfeitos", governantes e sua corte de interesses instalados, e o dos "descontentes", cujo chefe, Boulanger, atingiu tal popularidade na capitalização do descontentamento, que tinha consigo a França! Claro que Ramalho fustigava a nossa República nascente que então procurava legitimar-se, depois de, muito apropriadamente, alguém se ter encarregue da remoção sangrenta do rei.
 
Isto, afinal, lembra-me qualquer coisa, até porque em Portugal, um século andado, continua a haver apenas os tais dois partidos singulares (o resto é paisagem não classificada) que já tiveram até o cuidado de, convenientemente, terem removido sem dor as ideologias dos seus pré-programas eleitorais.

E que tem isto a ver com o Douro, a linha do Tua e a actual polémica instalada de sucessivos acidentes-incidentes e o pré-anúncio de mais uma barragem? É que afinal não mudámos assim tanto! E esta história do Tua - caminho de ferro, barragem, Património Mundial -  é mais um sinal da perversão democrática em que vivemos onde, aqui com mais ou menos dor, a gente do partido dos satisfeitos, lá vai conseguindo levar as águas para donde mais lhes convém. E os outros lá vão protestando, com mais ou menos indignação...
 
Só espero que esta estória do último acidente-incidente do Tua não acabe como o avião do Sá Carneiro ou o assassinato de D. Carlos, perdida nas "brumas da memória" e nos ensimesmados caminhos ínvios da justiça e dos inquéritos sem conclusão ou com decisão combinada em voto parlamentar. Ao primeiro, porque morto em acidente/atentado/atentado/acidente/atentado com um avião, vá de agarrar-lhe no nome e dá-lo a um aeroporto; ao segundo, assassinado como uma fera no Arsenal de Lisboa, a República fez dos seus assassinos (sem mandantes/com mandantes?) figuras elogiadas em museu. E no Tua? Sai mais uma barragem pr'a mesa do canto e depois um museuzinho para mostrar como era lindo aquele vale e que trabalhão dera construir aquela ferrovia nos idos de oitocentos!!??

Uma barragem num rio é como um trombo numa veia.


terça-feira, 26 de agosto de 2008

Um guia de visita à arte paleolítica da Europa Ocidental

BAHN, Paul G.: L'Art des Cavernes. Guide des grottes ornées de la période glaciaire en Europe. Infolio éditions, 2007, CH-Golion, 224 p., ill. (www.infolio.ch)

Com data ainda de 2007, que assinala as últimas actualizações, foi editado há poucos meses este excelente guia de visita aos sítios de arte paleolítica da Europa Ocidental abertos ao público. Existe uma edição original em inglês, titulada "Cave Art" (Ed. Frances Lincoln), e outra traduzida para francês, esta das Éditions Infolio e que é a que aqui apresento. Ambas edições têm um grafismo rigorosamente idêntico.

O autor, Paul G. Bahn, apresenta-se na sobrecapa como "um arqueólogo independente, escritor, tradutor, homem de rádio e de televisão". Mas entre os iniciados na arte paleolítica é bem conhecido pelos seus trabalhos de rigorosa divulgação, quer sobre arte glaciar, quer sobre arqueologia em geral. O seu manual "A very short introduction to Arcaheology", foi traduzido no passado ano para português. Será mais conhecido do meio universitário que se interessa por arte de época glaciar, pelo seu "The Cambridge Illustrated History of Prehistoric Art" (1998), na sequência da "Journey through the Ice Age", que assinou com J. Vertut. Mas deve destacar-se o seu papel enquanto coordenador da equipa que descobriu e estudou as cavidades decoradas de Creswell Crags, nomeadamente Church Hole, as primeiras grutas com arte paleolítica descobertas na Grã-Bretanha. Foi (e continua sendo) um dos grandes defensores e divulgadores da Arte do Côa, cujos sítios amiúde visita, quer em expedições de divulgação, quer acompanhando os nossos trabalhos de campo saciando a sua sempre sedenta curiosidade sobre as principais novidades que vão surgindo no Côa, que considera e com razão, "uma arte fora do comum" (p. 205)!
 
Este guia, uma edição ao estilo livro de bolso ainda que em capa dura, é uma obra de grande utilidade, pois é a primeira vez que aparece uma publicação que pontualiza todos os sítios com arte paleolítica, quer em gruta, quer ao ar livre, que estão convenientemente abertos ao público, com visitas guiadas e documentação variada. Há, evidentemente outros guias de grutas decoradas mais antigos, como os de Sieveking e Sieveking, de Vialou para França e de Nougier e Jordá, todos de características diferentes deste, já que Bahn, um incansável viajante, quis fazer uma obra rigorosa e essencialmente prática para os dias que correm... Por isso, nela não faltam os horários de abertura dos sítios, os telefones locais, os sítios web, os preços de entrada, as particularidades de cada sítio e os conselhos para cada tipo de visita, onde se come ou não melhor na região e... se é ou não permitido fotografar as obras rupestres (o que é interdito na maior parte das grutas, como se compreende, mas não no Vale do Côa).

Após uma curta introdução com alguns conselhos práticos para quem pretenda visitar a arte das grutas, apresenta-se uma breve síntese sobre as características da arte paleolítica, com uma particular incidência nas principais teses explicativas da mesma, e de onde, curiosamente, está praticamente expurgada a "explicação xamânica". Mas quando Paul Bahn afirma que "Aucune explication ne peut à elle seule rendre compte de la totalité de l'art de la période glaciaire" (p. 31) é, evidentemente, aos recentes defensores do xamanismo como teoria global a que Bahn se refere! O que é bem verdade! E isto é Bahn no seu melhor! Recorde-se aliás, a vivíssima polémica que o autor travou com Jean  Clottes a propósito dos seus trabalhos com David Lewis-Williams e da transposição das explicações xamânicas da arte dos San para as grutas paleolíticas europeias. Mas isso é toda uma outra história. Que ainda assim aflora na dúvida metódica sobre a atribuição às fases antigas da arte paleolítica de "todas as sofisticadas pinturas da gruta Chauvet" (p. 18).

São seguidamente descritos e ilustrados 51 sítios com arte paleolítica abertos ao público (e alguns são apenas museus com arte móvel ou fragmentos decorados de paredes), assim distribuídos: Inglaterra - 1; França - 24; Espanha - 20; Portugal - 2 (Escoural e Vale do Côa); e Itália - 4.

Como se sabe, em Portugal apenas o Escoural e o Vale do Côa têm visitas guiadas, embora haja outros sítios com arte paleolítica abertos a visitas públicas, mas não guiadas, como é o caso do Poço do Caldeirão, no Zêzere, ou o cavalo glaciar do Ocreza (sítios que um destes dias aqui apresentarei mais demoradamente). Há uma ou outra imprecisão nas sínteses de sítios, por exemplo na datação Solutrense do Escoural (p. 201), claro que isso é normal num guia com estas características. Mas o que me interessa ressaltar é louvar o autor pela sua capacidade de síntese e a paciência em coligir toda a informação relevante para cada sítio, o que, no seu conjunto, tornam este livro num guia de extrema utilidade.

Se, como afirma Paul Bahn, "visitar uma gruta do período glaciar é um imenso privilégio" (p. 8) no século XXI, não o será menos podermos hoje peregrinar pelos sítios paleolíticos do Vale do Côa na sua ambiência natural. Por isso, louvando o autor pelo guia que escreveu, não poderia também deixar de lhe dar daqui o meu abraço de agradecimentos pelo seu contributo quando se tratou de salvar a Arte do Côa.

domingo, 17 de agosto de 2008

Côa, la rivière aux mille gravures

Ou também "Côa, o rio das mil gravuras".
O filme foi apresentado em finais de 2007, já passou por três vezes na nossa RTP 2 (e também na Cinemateca Nacional), foi adquirido por muitas televisões pelo mundo fora e participou em vários festivais de cinema documental científico, onde ganhou pelo menos 4 grandes prémios. Por tudo isso, não queria deixar de arquivar aqui a sua edição em DVD que, aparentemente, não está nos nossos circuitos comerciais. Mas pode ser adquirida em França e pela net, pois tem uma edição internacional.



É uma parceria luso-francesa, com realização de Jean-Luc Bouvret e produção de Gabriel Chabanier. E foi feito com grande paixão e saber-fazer, com um longo tempo de gestação que pudemos acompanhar ao longo de anos no Vale do Côa. 
E, para aguçar o apetite de quantos sentem e vivem as coisas do Côa, posso também afirmar que Jean-Luc Bouvret prepara um novo filme, desta vez uma espécie de história política do Vale do Côa (as tais gravuras paleopolíticas da discórdia...). Por onde passarão os principais actores políticos e "energéticos" (e também arqueológicos) de meados da década de 90, ao tempo da polémica do Côa. Que tal retumbância teve pelo mundo fora e tantas paixões gerou, a ponto tal que, 13 anos depois, um realizador francês, que se tornou um grande amigo do Côa, resolveu contar por imagens esta história ao mundo. Tendo em atenção a qualidade e o sucesso do seu primeiro filme sobre o Côa (que também poderia ter-se chamado Uma Aventura Arqueológica, pois é disso que trata) e sabendo-o já um conhecedor profundo da grande e pequena história do Vale do Côa, não duvido da valia que terá mais esta sua realização. Obrigado Jean-Luc.

Jean-Luc Bouvret no remanso pós-repasto da inolvidável Quinta de Ervamoira
Foto: Autor não identificado

Em filmagens no corte do Fariseu.
Foto: AMB

Em filmagens sob o sol tórrido da Penascosa
Foto: Manuel Almeida

E à procura de efeitos especiais na noite da Penascosa
Foto: AMB

A sempre muito difícil logística do Vale do Do Côa
Foto: AMB

Jean-Luc Bouvret frente à ensecadeira do Côa, resto simbólico de uma história interminável
Foto: AMB