Para além do Vale do Côa... há no território português pelo menos dez outros sítios com gravuras e pinturas de arte paleolítica de ar livre. Todos se localizam em vales fluviais da zona mais a ocidente da Meseta, desde o Alto Sabor (com pelo menos 4 sítios) ao Guadiana. E se nem todos apresentam uma mesma uniformidade de estilo, todos têm um certo ar de família, o que lhes concede uma singular homogeneidade artística e me leva a considerá-los como fazendo parte, no seu todo, do nosso mais arcaico "império artístico", de plena idade glaciar e que há que valorizar como um todo. E a identificação ao longo dos últimos anos de todos estes sítios que, excepto o Mazouco, o foram após a batalha do Côa, assinala um dos mais interessantes episódios da nossa arqueologia da viragem do milénio. Afinal o reconhecimento da arte paleolítica de ar livre na Europa ocidental é também ele um dos mais assinaláveis fenómenos da arqueologia europeia das últimas décadas. Ainda para mais, a imensa maioria de todos estes sítios localiza-se na Península Ibérica, sendo o Vale do Côa o seu lugar cimeiro.
Por todas estas razões, será de toda a justiça que num futuro próximo, Portugal solicite a sua classificação em bloco como Património da Humanidade, na categoria de "extensão do Vale do Côa", como já afirmei na minha última postagem. Basta que o país se interesse por isso.
Conhecidas, entretanto, as condições de jazida deste tipo de sítios, sempre em rochas xistosas e em vales encaixados, calculo que muitos mais haverá por identificar, especialmente sob as águas das nossas principais barragens, em particular as do vale do Douro e da Beira interior. Por razões óbvias, uma tarefa para as gerações vindouras!
Vai para três anos fiz uma sistematização de (quase) todos estes sítios para um Atlas da arte paleolítica peninsular que, sob a coordenação de J. Fortea, será publicado em Espanha. Infelizmente, tarda esta publicação, o que faz destes destes sítios locais ainda pouco divulgados, mesmo entre a comunidade arqueológica. Enquanto se aguarda a sua (já desactualizada) publicação, irei apresentá-los, ainda que sumariamente, neste espaço. E começarei pelo cavalo isolado do Ocreza, que foi identificado por uma equipa do então Centro Nacional de Arte Rupestre em Setembro do ano 2000 (AMB/Fernando Barbosa/Manuel Almeida/João Félix).
Este percurso final do Ocreza é um vale fundo e encaixado, rasgado nos xistos que marcam toda a geomorfologia regional.
Já em 1973 tinha feito aqui prospecções rupestres (com Maria Manuela Martins, Vítor Serrão e Mário Varela Gomes), no âmbito da sistematização espacial do Complexo de Arte Rupestre do Vale do Tejo e tínhamos então identificado algumas rochas historiadas com arte esquemática. Este troço de rio passou mesmo a assinalar desde então um dos limites do CARVT. Vá lá saber-se porquê, esta pequena rocha a todos passou então despercebida! E só seria revelada na campanha do CNART de Setembro de 2000, uma rápida prospecção realizada a pedido de L. Oosterbeck na iminência da construção de uma das pontes da A-23, que ficou quase sobranceira ao sítio.
Ao contrário das grandes estações rupestres do Tejo (Fratel, Cachão do Algarve, S. Simão...), com uma grande concentração de gravuras nos mesmos sítios, no Ocreza as rochas gravadas são em menor número, mesmo com poucas gravuras por painel, e estão dispersas ao longo da margem direita daquele último troço de rio entre o paredão da barragem e a foz. Entre as suas rochas decoradas destacam-se algumas espirais, poucos motivos esquemáticos antropomórficos, um grupo de 2 zoomorfos onde se destaca o grande e inestético híbrido num afloramento solto na última curva de rio e que tem sido divulgado em desenho incompleto; e muito em especial, o único painel com uma gravura claramente paleolítica conhecida em todo o ciclo rupestre do Vale do Tejo.
É uma pequena rocha patinada em tons de azul, muito lisa e onde se destaca claramente este equídeo virado a montante, obtido através de uma picotagem funda e vigorosa. O animal tem uma cabeça aparentemente incompleta, jogando com a própria forma da rocha, o que é muito próprio aos cânones da arte paleolítica. Em estilo de um naturalismo simples, em perfil absoluto, com uma cérvico-dorsal muito acentuada e uma perna por par, é uma gravura que poderia ter sido realizada por um "emigrado" do Côa, um dos seus "iniciados" pesquisadores de sílex... Pois o motivo enquadra-se totalmente nos padrões estilísticos e técnicos da fase arcaica do Côa (tem também bons paralelos num cavalo do Escoural), o que me levou a propor uma cronologia muito recuada para esta gravura (período Gravetto-Solutrense), sem paralelo em qualquer uma das gravuras conhecidas no grande complexo do Vale do Tejo, onde geograficamente se insere.
Por outro lado, a sua localização espacial em painel destacado entre duas curvas do Ocreza e o facto de ser um motivo singular em toda a região, leva-me também à conclusão que é uma gravura com aparente sentido topográfico, uma "marca" (de caça? étnica? tribal? totémica?...) cujo significado evidentemente se perdeu.
Em conclusão, este singular cavalo do Ocreza, que terá sido feito há mais de 20.000 anos, é a mais antiga gravura entre os cerca de 40.000 motivos do complexo rupestre do Tejo. E um dos mais importantes da arte rupestre do Portugal central.
Para saber mais:
Para saber mais:
BAPTISTA, A.M. (2001): Ocreza (Evendos, Mação, Portugal Central). Um novo sítio com arte paleolítica de ar livre. in CRUZ, A.R. e OOSTERBEEK, L., Territórios, mobilidade e povoamento no Alto Ribatejo II - Santa Cita e o quaternário da região, Tomar, CEIPHAR [Arkeos, 11], p. 163-192.
O cavalo do Ocreza sobressaindo por entre um caos de xistos
Note-se o fino ponteado da parte inferior da cabeça que não foi aprofundado. O pequeno traço no interior do corpo do equídeo poderá representar um "sinal"
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