quinta-feira, 31 de julho de 2008

A tragédia da Arte do Vale do Tejo 2 - Sob as águas até quando?

Fratel (VVRódão). O homem e o sol, destinos cruzados num mito intemporal
Foto: AMB


S.Simão (Nisa). Diálogo entre a forma espiralada e as águas de um qualquer rio do esquecimento. Uma procura do paraíso perdido ou o mito do eterno retorno?
Escute-se Monteverdi (Presso un fiume tranquillo, de Il sesto libro de madrigali, 1614). 
Foto: AMB


Cachão do Algarve (VVRódão). Quem ousa descodificar o pensamento simbólico?
Foto: AMB


Fratel (VVRódão). Par de antropomorfos ictifálicos, ou a génese da simbólica moderna. 
Foto: J.Justo


Cachão do Algarve (VVRódão). O homem e a espiral, a procura de si-mesmo, ou uma viagem ao princípio do mundo. Foi também símbolo do CNART.
Foto: AMB.
 

quarta-feira, 30 de julho de 2008

A Tragédia da Arte do Vale do Tejo

Foto: AMB

As Portas de Ródão lá continuam, sem a imponência que a subida das águas do Tejo lhe retiraram em meados dos anos 70, após o encerramento das comportas da barragem de Fratel.

Foto: AMB

Aqui estava o axis mundi do Complexo de Arte Rupestre do Vale do Tejo, um território com mais de 30 quilómetros de extensão monumentalizado através da simbólica pré-histórica.
E aqui começou a minha paixão pela arte mais arcaica dos primeiros fazedores de cultura. E também o primeiro e mais fundo lamento pelo implacável jogo de forças entre os construtores de barragens e o salvamento do nosso imaginário rupestre, que teima em aliar os seus maiores núcleos aos grandes cursos de água! Cuja maior vitória para o campo rupestre se haveria de dar no Vale do Côa. Mas tantos outros sítios engolidos foram, alguns sem qualquer recolha arqueológica, como no Zêzere, onde Castelo de Bode terá feito desaparecer tanta arte rupestre, sem ninguém dar por isso!
Mas antes desses dias de final de milénio no Côa, Portugal afundaria sem grandes sobressaltos o maior complexo peninsular de arte rupestre holocénica. Dezenas de milhar de gravuras picotadas nos xistos aflorados de ambas as margens do Tejo desde a sua entrada em Portugal, junto à foz do Sever, até à embocadura do Ocreza. Mas tantas mais haveria no chamado Tejo Internacional, onde a barragem de Cedillo nunca nos permitiu grandes observações. Todo um capítulo de uma civilização pré-histórica engolido pelas águas de uma pequena barragem que crismada foi com o nome de uma das suas principais estações rupestres: Fratel. E lá ficou, atolada até hoje na massa líquida e certamente sepultada sob grossas capas sedimentares, a sua notabilíssima rocha F-155 a quem em tempos dediquei um livrinho.

Viviam-se os últimos dias de estertor do Estado Novo, a democracia irrompia num ar de festa infinita, a felicidade parecia estar ali ao virar da esquina da história... Algumas reportagens de jornais do tempo, como os extintos Diário de Lisboa (o meu jornal de tantos anos!) e o República, são elementos preciosos que documentam muito bem o também estertor ao olhar contemporâneo da Arte do Tejo, cujo cair de pano acompanhava ingloriamente os dias do fim da ditadura. Ainda se tentou demagogicamente comparar este crime lesa-arqueológico com aval estatal, com o que se passou em anos mais recentes no Guadiana, durante a etapa final de construção do Alqueva. É comparar o sol com uma candeia bruxuleante!

Passaram mais de 30 anos. E eu com eles. É espantoso como guardo tão vivas na memória as milhares de imagens rupestres do Tejo que nunca mais ninguém veria em toda a sua glória e pelas quais em tempos peregrinei, uma a uma, por todas e cada uma! E a espaços lá volto tantas vezes, sabendo que mais de 90% da Arte do Tejo continua selada pelo manto, ora cálido, ora lodoso e mal-cheiroso, das águas presas do maior dos rios peninsulares.

Sempre desejei que se fizesse na região uma grande estrutura museológica que valorizasse o importantíssimo património rupestre que grande parte dos portugueses desconhece quase em absoluto. Vila Velha de Ródão e Nisa partilham quase na totalidade os principais sítios rupestres do Tejo. Um restinho ficou em Mação (e que bem o tem valorizado através do IPTomar), na margem direita do Ocreza, aqui com o notável exemplo da única gravura paleolítica conhecida em todo o complexo - o enigmático cavalo do Ocreza que a nossa equipa do ex-CNART descobriu numa singular expedição ao sítio no ano 2000. 
Nunca se contabilizou o número exaustivo de gravuras que no Tejo se descobriram e parcialmente se estudaram. Mas sítios como Fratel, Cachão do Algarve e S. Simão guardam por si só largos milhares de gravuras. E muitas delas nunca puderam sequer ser observadas, pois já no momento da sua revelação estavam permanentemente submersas. 
Ensaiámos muitas vezes junto dos sucessivos autarcas e responsáveis políticos fazer ali qualquer coisa que lembrasse o grande património rupestre afogado, mas que também memorasse uma das maiores aventuras da arqueologia portuguesa do século XX que foi todo o trabalho de salvamento da Arte do Tejo. Feito do nada! E que formou toda uma geração de arqueólogos, a que António Carlos Silva chamou simbolicamente, num texto de 1994, a "geração do Tejo". 
E alguma coisa se foi fazendo, em especial em Vila Velha de Ródão (que excelente romagem a festa dos 30 anos do salvamento da Arte do Tejo! obrigado presidenta Maria do Carmo), onde se criou uma sala com uma exposição permanente sobre a arqueologia local e onde a Arte do Tejo sempre teve o seu lugar de eleição (há poucos anos refeita com o apoio do Museu Nacional de Arqueologia). O antigo e já falecido presidente da câmara Baptista Martins foi sempre um entusiasta destas coisas, honra lhe seja. Através dele, para ali cedi algumas centenas de diapositivos que tinha feito no Tejo nos anos 70.
Nos últimos anos tem sido o entusiasmo da actual presidenta Maria do Carmo Sequeira que tem mantido vivo este legado. Há 5 anos atrás dedicou mesmo à temática rupestre do Tejo o cartaz principal da sua VII Feira das Actividades Económicas do concelho. E para ali tivemos o gratíssimo prazer de colaborar na execução de um pavilhão todo ele emoldurado pela Arte do Tejo. E onde se aproveitou a oportunidade para lançar mais uma vez a ideia de criação de um grande Centro de Interpretação da Arte do Tejo, uma ideia que também é bem acolhida pela actual presidenta da Câmara de Nisa.

Fotos: AMB

Parece que é chegada a hora de avançarmos para uma maior valorização local da Arte do Tejo. Que, independentemente de tudo o que agora se faça, terá um dia seguramente o seu Museu próprio, um pouco à semelhança do que estamos a criar para o Vale do Côa. Porque o merece por direito e méritos próprios.

O curioso disto tudo é que qualquer destes concelhos figura na lista dos mais envelhecidos não só do país como da Europa! E a dita barragem de Fratel não lhes trouxe aparentemente benefícios de maior, nem é fonte de qualquer emprego local. Pelo contrário, afundou-lhes o seu mais importante legado pré-histórico e afastou-lhes o tal turismo cultural que hoje todos os concelhos do interior procuram atrair. Bom seria que também a EDP, a entidade exploradora da barragem, ao menos financiasse com a dignidade que o merece a construção de um grande museu dedicado ao Complexo de Arte Rupestre do Tejo. É o mínimo que hoje devíamos exigir. Porque a memória não tem preço e o passado é cada vez mais presente!



 

sábado, 26 de julho de 2008

Ainda a diatribe de MST

Ainda em tempo e com a devida vénia ao abnoxio do Ademar, não resisto ao seu corrosivo comentário à já "famosa" diatribe de MST sobre o Vale do Côa:

"Ninguém jamais conseguirá convencer Miguel Sousa Tavares de que as gravuras de Foz Côa têm mais de... 300 anos. Mais depressa acreditará nos milagres de Fátima ou da Santinha da Ladeira...
A arqueologia portuguesa não merece estas diatribes de Miguel..."

Vale do Côa sempre!

Engenheiros à solta, ou o fantasma de Foz Côa

Quatro engenheiros na Sic-Notícias, no Expresso da Meia Noite de hoje, debatem os problemas da actualidade energética em Portugal, com particular incidência na introdução ou não do nuclear entre nós. 
Com mais ou menos fantasmas, números para todos os gostos, com mais ou menos energias renováveis à mistura, lá aflora o "desastre" mal digerido de Foz Côa, seja ele puxado pelo inevitável Mira Amaral, seja pela palavra do douto bastonário da Ordem, entre o indignado e o indisposto. E o preclaro moderador ousou sugerir, como que a medo, que afinal quem venha hoje a Foz Côa aqui pode ainda observar os restos de uma barragem que ninguém ousou por enquanto destruir. Como que a dizer que... é só repegar! 
E logo o douto bastonário não perdeu o pé para sugerir de imediato que o "desastre" foi de tal ordem, que o país parece ter perdido durante 13 anos (tal foi a pancada) a vontade de fazer mais barragens, perdendo de um folgo técnicos que se reformaram e capacidade e iniciativa na matéria. Afinal o lago monumental do Alqueva não foi feito depois do abandono de Foz Côa??!! Se bem me lembro acho que foi inaugurado nos inícios do milénio por um Guterres em fim de ciclo. Só faltava agora ser também Foz Côa a responsável pelo declínio da famosa escola portuguesa de engenheiros de barragens! Claro que o afã programático do renovado plano de barragens, ainda há pouco relançado com pompa e circunstância pelo actual governo, se encarregou já de tudo isto desmentir.

Por entre os números da imparável carestia energética e o consequente refrear do crescimento económico, cada um clama por sua dama. Onde, apesar de tudo, mais me agradou ouvir o argumentário escorreito da mancha esquerda da mesa (et pour cause), do que o solilóquio à direita. 
Mas ninguém contrapõe a estes ilustres engenheiros de diversa patente, outros números, talvez mais lúcidos e com dividendos seguramente melhor distribuídos, que são os do crescimento sustentável do"negócio" do PATRIMÓNIO, que parece tardar em virar moda em Portugal!!??E de que Foz Côa foi apenas um primeiro e tímido passo!? E uma matéria-prima em que o país é ainda tão rico!?  
Claro que isto nada tem a ver com o custo do Kw, a propósito do qual e das suas incidências há sempre uma maneira de dar a volta ao discurso! Impondo-o desde logo como o factor essencial do crescimento sustentado da nação! 

Ora, perante o frentismo acutilante e renovado dos construtores de barragens, eólicas ou centrais a carvão ou nucleares, é urgente que construamos nós um verdadeiro lóbi do património, porque nos recusamos a ser cada vez mais condenados à desmemória e à ditadura do Kw. E se sem lóbi de qualquer espécie se evitou o desastre que seria a construção da barragem do Côa, que força não teriam ainda mais os nossos argumentos se também eles fossem mais maduramente apoiados no tal crescimento sustentado do "negócio" do património para onde a globalização, quer nos ponhamos ou não a jeito, teima em empurrar-nos!

quinta-feira, 24 de julho de 2008

Centro Interpretativo da Arte Rupestre de Chãs d'Égua (Piódão, Arganil)






Chãs d'Égua, da freguesia do Piódão, concentra no seu território uma impressionante aglomeração de rochas decoradas com gravuras picotadas, na sua generalidade com uma temática geometrizante e antropomórfica da pré-história recente, mas também de tempos históricos, como as bem curiosas da eira do Piódão.
Por solicitação da Câmara Municipal de Arganil e com o apoio imprescindível do antropólogo Paulo Ramalho, grande animador local, fizemos nesta região algumas campanhas de levantamento da arte rupestre de uma série de rochas seleccionadas, onde se destacam, por exemplo, a notável Lajeira do Freixieiro, os grandes lajedos do Xorxo com figurações humanas quase em tamanho natural e um dos painéis de Vale Côvo. Muito ficou por fazer... E aqui estaria um bom tema de tese para quem queira aprofundar o conhecimento do ordenamento rupestre de um bem delimitado território de montanha da Beira interior.
Uma síntese da arte rupestre desta região pode agora ser apreciada neste pequeno Centro de Interpretação que aproveitou (o que já vem sendo hábito) a abandonada escola secundária da aldeia serrana de Chãs d'Égua, edifício de outra forma condenado à ruína.

Este centro interpretativo é uma herança ainda de trabalhos dos tempos do Centro Nacional de Arte Rupestre (extinto em Abril de 2007 pelo PRACE), que conseguimos inaugurar, ainda que apressadamente, na Páscoa passada.

ATAPUERCA e VALE DO CÔA. Reflexões em tempo de mudança






À entrada das notáveis jazidas paleontológicas de Atapuerca, um cartaz com vários metros de altura sinaliza os diversos apoiantes e financiadores dos trabalhos arqueológicos e da arqueologia à escala industrial que aqui se desenrola. Ao alto os Fundadores, sob os nomes dos três actuais co-directores da Fundación Atapuerca (Arsuaga, Bermúdes e Eudald Carbonell, uma verdadeira estrela mediática). E onde, ao lado dos imprescindíveis Caja de Burgos e Diario de Burgos, se destacam a Iberdrola, a Fundación Eulen e a cervejeira San Miguel (é a única cerveja que se bebe em Atapuerca!, como me lembrava a encantadora Carmen Romero, proprietária da casa de turismo rural onde pernoitámos em Olmos de Atapuerca). Logo depois o patronato institucional, com a Junta de Castilla y León à cabeça... E por'i abaixo até aos simples "colaboradores tecnológicos e científicos". Tudo pontualizado com rigor e grande destaque e que dá bem a ideia do que é hoje a arqueologia num sítio em ebulição permanente, por sinal também ele Património da Humanidade desde o ano 2000. E que me (re)conduz ao Vale do Côa, PH desde Dezembro de 1998!

Um convite da Fundación Atapuerca levou-me, com Alexandra Lima e Jorge Sampaio, a cirandar três dias por estes lugares magníficos, guiados pela grande amabilidade e prazer de viver de Amalia Pérez-Juez. Laboram neste mês de Julho nos sítios de Atapuerca, o grande mês das escavações, cerca de 150 investigadores (e não apenas estudantes!). Foi até eles que levámos as novidades do Vale do Côa numa conferência que realizámos em Burgos num ameno fim de tarde da passada semana. E os paralelos entre a investigação e a gestão dos dois sítios Património da Humanidade não podem deixar de ser reflectidos. Sem entrar na história moderna de ambas as jazidas, basta lembrar que em Atapuerca foram até ao momento produzidos mais de 20 doutoramentos, os últimos três na Complutense de Madrid, como memora o nº 26 do "Diario de los Yacimientos de la Sierra de Atapuerca". 

Mas o que me importa agora deixar aqui nota, são os dois modelos de gestão e investigação de ambos os sítios. E não quero ser muito pessimista! Até porque a arqueologia portuguesa não entrou ainda na era "industrial" do tipo de arqueologia que se pratica em Atapuerca e que se vai afirmando um pouco por toda a Espanha. Com grandes apoios públicos mas muito mais privados. Fruto dos tempos e das autonomias, o passado é em Espanha uma grande fonte de riqueza ao mesmo tempo que motivo de orgulho dos seus povos, os melhores guardiões do seu património. Burgos, com três Patrimónios Mundiais (Atapuerca, mas também a Catedral e o seu notabilíssimo Museu, e os Caminhos de Santiago na região) recebe ± 6 milhões de visitantes/ano. Cerca de 100.000 visitam as jazidas paleontológicas de Atapuerca e muito mais a região, com temperaturas muito amenas no verão, fruto da altitude elevada.

No Vale do Côa, estupidamente, ainda se discute uma barragem!!! que tudo afogaria, tendo-se o Estado praticamente demitido nos últimos anos das suas responsabilidades de gestão, não nos deixando alternativas. Aliás, o mecenato em Portugal continua uma brincadeira de burgueses anafados e de jogos fiscais.

Não há em Atapuerca um grande museu, como o que se está a fazer no Vale do Côa. Mas o impacto dos sítios arqueológicos na região é enorme, conjugando um grande dinamismo científico com um turismo polifacetado nesta ampla região (sem praias!) do interior peninsular. Tudo servido por um grande mediatismo sem paralelo entre nós.

Portugal soube defender, e bem, os sítios do Vale do Côa, mas não soube criar até agora um modelo de gestão conveniente que os projectasse na materialidade (e mundos virtuais!) do século XXI. E o museu que agora estamos a criar não tem ainda sequer maduramente reflectido um modelo de gestão e de articulação com o PAVC e as forças regionais e nacionais que pense o dia seguinte à sua inauguração. 
Atapuerca e Vale do Côa, dois sítios da pré-história antiga com tanto em comum e com tanto a separá-los!

segunda-feira, 14 de julho de 2008

Obras-Primas da Arte do Côa 02 - Rocha 3 da Quinta da Barca






É um pequeno mas notável painel insculturado com três gravuras paleolíticas da mesma fase de execução. Localiza-se na margem esquerda da ribeira da Quinta da Barca, um local infelizmente ainda não aberto ao público, em especial por dificuldades de acesso.
As gravações deste pequeno grupo de capra pyrenaica são tecnicamente muito elaboradas. Desapareceu parte da figura ao alto à esquerda, presumivelmente um macho que seria muito idêntico ao motivo central do grupo (conf. a reconstituição em desenho).
O que ressalta desta excelente composição é o apuro técnico do conjunto e o notável domínio do movimento, simulado quer pelas duas cabeças, quer pela perspectiva correcta das pernas dianteiras da figura central. Por outro lado, a solução artisticamente muito elaborada para a gravação dos longos cornos anelados, com os anéis de crescimento como que prolongando a técnica de "arame farpado" do interior do corpo fazem desta figura um caso singular em todo o Vale do Côa. 
Também a representação da fêmea, figurada em perfil absoluto no sector inferior do painel, tem o mesmo apuro técnico e é sem dúvida da mesma mão.
Embora estas gravuras tenham os principais atributos convencionais da arte zoomórfica da fase antiga da Arte do Côa, há neste conjunto um sopro de criatividade artística verdadeiramente notável e que o destaca das restantes produções rupestres dos núcleos do Côa. 
Da mesma maneira que para a Rocha 1 de Piscos, este é outro caso em que se pode falar de um artista singular a que chamarei o Mestre da Quinta da Barca e que poderá eventualmente ter deixado outras produções artísticas no vale (cabra na Penascosa ?).
Este painel tem infelizmente graves problemas de conservação. Será um dos quatro únicos que serão replicados para o Museu do Côa por razões que explicarei em outra ocasião. Já o Museu de Altamira nos tinha em tempos solicitado uma sua réplica (é muito interessante o paralelismo entre a posição e o movimento de pernas do macho central e os famosos bisontes - misto de pintura e escultura - revolvendo-se no tecto principal de Altamira). De qualquer forma, neste museu pode apreciar-se esta imagem em fotografia fazendo jus à enorme qualidade artística deste pequeno (mas grande!) conjunto de pirenaicas do Vale do Côa.

domingo, 13 de julho de 2008

Ainda Miguel Sousa Tavares e o Vale do Côa


O justo coro de indignação (e de aclamados quanto insensatos apoios!) que a coluna de opinião de MST no Expresso de 5 de Julho corrente sobre o Vale do Côa gerou entre a comunidade de arqueólogos e não só, opiniões que podem ser seguidas nomeadamente na lista de discussão do Archport, leva-me a deixar aqui hoje para memória de quem não conhece, não se lembra ou já se esqueceu, a "famosa" primeira página de "O Independente" de 7 de Julho de 1995,  jornal entretanto falido e extinto, mas então dirigido por Paulo Portas em plenos tempos de brasa de demolição do cavaquismo.
É esta afinal a reconhecidamente única fonte de informação sobre a Arte do Côa que MST invoca, nomeadamente na sua tréplica ao desforço de Manuel Maria Carrilho ontem publicado em carta ao Expresso e na sua coluna de opinião semanal do Diário de Notícias. Nada que não tivesse já intuído quando sugeri que MST fala e escreve muito "por ouvir dizer"!
Sabe-se qual foi a posição do Independente durante a polémica do ano de 1995 sobre o Côa, um dos únicos jornais portugueses claramente ao lado do lóbi barragista (para quem não saiba, os jornais do tempo não se limitaram a informar, tomaram efectivamente posição!) e a quem foram passados os relatórios de Bednarik e Watchman para a EDP, antes sequer de serem conhecidos e contraditados pelo grupo de arqueólogos que então começava a investigar a Arte do Côa.
Recordo-me muito bem particularmente desse dia, pois tinha ido expressamente a Lisboa para participar num debate sobre a problemática do Côa no Instituto Superior Técnico com engenheiros de barragens. E não esqueço o tremendo impacto que teve o Independente desse 7 de Julho (era um jornal de combate à direita, que se comprava para se saber qual era o escândalo da semana!) que levámos meses e anos a contraditar, em particular junto de decisores políticos governamentais. Que já após o anúncio do fim da barragem e da criação do Parque Arqueológico do Vale do Côa ainda me perguntavam, quase a medo, se a Arte do Côa era seguramente tão antiga como dizíamos.
Como se vê, a força de uma bem feita quão distorcida 1ª página que surja no momento certo, e que no caso tomava como fundo os geniais e incompreendidos cavalos da R. 1 de Piscos, vai muito para além do próprio tempo de vida do jornal em que aparece. Mas se agora disserem a MST que a sua fonte primária é o Paulo Portas, ele não deve achar lá muita piada ao caso! 

sexta-feira, 11 de julho de 2008

Carta Aberta ao Doutor Vital Moreira

Do blogue Causa Nossa
Quinta-feira, 10 de Julho de 2008

"Independência energética"
É imperioso mudar de paradigma energético, substituindo ao máximo os combustíveis em favor da energia eléctrica gerada por fontes renováveis, até para defender a independência energética do País.
Só que a maior parte da energia eléctrica continua a ter origem termoeléctrica, queimando carvão (que importamos e cujo preço também está subir rapidamente) ou gás natural (que também é importado e cujo preço tende a acompanhar o preço do petróleo). Por isso, para além da exploração das energias eólica e solar -- que têm as limitações que têm, desde logo nos custos --, cabe saber se não se justifica reequacionar o tabu da energia nuclear, bem como recuperar importantes projectos hidroelétricos que foram postos de lado por razões discutíveis, como o caso de Foz-Côa.
Quando os combustíveis atingirem os 200 dólares, a situação de emergência energética não poupará tabus nem preconceitos.

Aditamento
A propósito: «UE-27: Portugal é o sexto mais dependente na energia».
[Publicado por Vital Moreira] [10.7.08] [Permanent Link]

Carta Aberta ao Doutor Vital Moreira

Caro Doutor Vital Moreira
Depois de ler esta sua prosa e embora tenha opiniões, que penso fundamentadas (como todo o português que se preza e se considere minimamente letrado e informado) sobre o nosso problema energético, não é sobre este que agora não resisto a interpela-lo.
Não quero também agora referir-me ao citado tabu da energia nuclear. Mas não posso deixar passar em claro o facto de pensar que o abandono do projecto hodroeléctrico de Foz Côa o foi "por razões discutíveis"! Até porque este pensamento aflora epidermicamente em alguns dos seus escritos de intervenção pública. O que demonstra que esta história continua para si muito mal digerida (mal compreendida?). Aceito que ponha à frente da defesa do património histórico-arqueológico a construção de mais uma barragem (isso é um problema da consciência de cada um numa sociedade democraticamente organizada), mas não posso aceitar que continue a pensar serem discutíveis as razões que levaram um governo do Partido Socialista a optar pela sua defesa a benefício das "razões discutíveis" de mais uma barragem! Já em finais de 95, aquando da tomada da decisão política, havia mais que razões técnicas e científicas a suportarem os custos e os porquês dessa decisão. Elas só se afirmaram ainda mais nos anos que desde então passaram. E o modelo de defesa do património rupestre que aqui desenvolvemos, com a criação de um Parque Arqueológico e de um Centro Nacional de Arte Rupestre (lamentavelmente extinto pelo actual PRACE), tem sido exemplificado como um dos melhores que foi criado no mundo cultivado para situações similares. E digo isto porque sobre ele tenho feito conferências um pouco por todo o mundo e sei como somos recebidos pelos nossos pares. E de como o exemplo português é elogiado pelo facto sem paralelo de não se ter continuado em Foz Côa a construção de uma grande barragem. Mas também isto demonstrará a força da sociedade civil. E de como os tempos são voláteis.
Pese embora, para mal dos pecados de todos os que trabalham em Foz Côa e dos que para aqui se exilaram voluntariamente como eu, a politização que desde sempre sofreu o caso Côa, como é possível que um ilustre jurista não procure informar-se melhor sobre a real valia arqueológica da Arte do Côa e de qual a razão da sua tão rápida classificação pela Unesco como Património da Humanidade. Se amanhã, conhecendo criteriosamente o que é a Arte do Côa e o seu contexto e me disser, sem mais, que prefere que sobre ela pouse uma barragem, então nada mais terei a dizer-lhe. Mas assim, como releva do seu escrito... custa-me a compreender.
Pelo apreço que tenho por si, lamento profundamente que esta sua opinião, no momento em que escreve, acabe por entrar no ror de crispações de ilustres quanto azedos e também mal informados colunistas que agora, aproveitando-se da crise energética mundial e da tal crise que, apesar de tudo, os nossos governantes teimam em minimizar, insistam em considerar uma das mais sábias decisões de um governo nacional em prol do nosso património arqueológico mais arcaico, como um erro fruto dos tempos! Diga-me: se amanhã um qualquer gabinete ministerial considerasse necessário derrubar a Universidade de Coimbra para sobre esse espaço passar uma qualquer das nossas tão indispensáveis quão discutíveis auto-estradas, qual seria a sua reacção? Em Foz Côa a construção da barragem seria infinitamente mais gravosa! E eu estaria entre os primeiros defensores da Universidade.
Com os meus cumprimentos

António Martinho Baptista
Vila Nova de Foz Côa

Obras-Primas da Arte do Côa - Rocha 1 da Ribeira de Piscos








Explique-se a que é, em minha opinião, uma das obras-primas absolutas da arte paleolítica do Côa. 

Num painel vertical localizado na margem esquerda da Ribeira de Piscos, a c. de 200 metros da sua foz (Foto 1), está uma das cenas mais emblemáticas de toda a nossa arte paleolítica. De referir que este sítio é uma das três estações rupestres presentemente abertas ao público que visita o Parque Arqueológico, de entre os 44 sítios rupestres que até ao presente aqui temos identificado.
 
Neste painel estão apenas figuradas duas representações associadas, constituindo uma cena, o que não é muito vulgar em arte paleolítica.  Dois equídeos cruzam as cabeças, naquilo que os etólogos designam como um acto de pré-acasalamento. A genialidade da cena e da sua concepção é perceptível pelos seguintes factores:

1 - O artista escolhe um painel topograficamente relevante na envolvente e em que a superfície do espaço operativo (área de gravação) não é totalmente plana, mas antes ligeiramente convexa na zona escolhida para a inserção das gravuras (Foto 2). Isto concederá aos motivos um aspecto tridimensional, a meio caminho entre a gravura simples e a escultura! Esta integração das formas naturais nas obras de arte é uma característica bem conhecida da arte paleolítica em gruta, mas menos vulgar na arte de ar livre, toda em xistos. No Côa outro exemplo relevante desta procura da tridimensionalidade é o peixe da rocha 5 da Penascosa, a que me referirei em outra ocasião.
 
2 - Seleccionado o sector a gravar - em arte rupestre picotada o artista não se pode enganar e corrigir o traço! -, é evidente que na cabeça do gravador estão já idealizados os motivos, pois os cavalos são desenhados seguindo as linhas de diaclases do xisto, aqui ligeiramente subverticais, como o serão as gravuras, que desta forma ganharão também algum dinamismo.

3 - Começando o desenho da esquerda para a direita, o que se percebe pela análise técnica das picotagens (conf. desenho), são traçadas em primeiro lugar as duas linhas cérvico-dorsais, quase simetricamente em dois longos S tombados, como se fora uma forma estilizada de ave. Cruzam-se seguidamente as cabeças, primeiro a do cavalo da direita e depois a da esquerda. Completa-se depois todo o contorno em perfil absoluto do cavalo mais à direita. Toda a gravação é feita da esquerda para a direita. O cavalo da esquerda é deixado intencionalmente incompleto, o que por vezes não é logo compreendido pelos visitantes. Mas não precisa de mais qualquer traço! São criações como esta, absolutamente "modernas" na sua conceptualidade, que me levam a considerar os artistas paleolíticos do Côa como "gente do nosso tempo". E por isso classifico a Arte do Côa como "Arte Contemporânea", seguindo neste caso o velho título de Breuil!

4 - O último traço gravado é a pequena linha entre o final da cauda curta e a terminação da perna posterior - uma só perna por par, como é típico no Côa. Traço que pode ser lido como que ligado acentradamente à cauda, à perna ou, à maneira dos nossos dias... como se fora a "assinatura" do ignoto artista, muito provavelmente Solutrense! Uma perfeita arte da ilusão. E uma criação notável daquele a quem gosto de chamar o Mestre da Ribeira de Piscos. 

5 - Estilisticamente, a forma volumosa e quase atarracada do cavalo da direita liga-se muito aos formalismos e cânones da arte Solutrense, pertencendo de qualquer forma à fase antiga da Arte do Côa (período Gravetto-Solutrense, anterior a c. de 20.000 BP). Mas, o que aqui importa realçar é que esta forma é também ela perseguida na tal procura da tridimensionalidade (conf. foto 2).

Esta genial peça artística do tempo paleolítico do Vale do Côa está isolada num painel onde, ao contrário do que é comum na nossa fase antiga, não há quaisquer outros motivos sobrepostos. Mirando e remirando vezes sem conta este painel (fiquei siderado quando pela primeira vez o observei em Janeiro de 95) e conhecendo bem a criatividade e as "armadilhas" interpretativas dos artistas do Côa, já tenho pensado e mesmo sabendo que os nossos conceitos de respeito pelas obras de arte nada terão a ver com os dos homens da última Idade do Gelo, se não seria a absoluta originalidade desta cena da Ribeira de Piscos que afastou deste painel a tentação da sobreposição de outros motivos!

São afinal obras tão criativas e únicas como esta que me levam a interrogar-me, como é possível que haja gente ainda tão empenhada em submergi-las! Ou sugerir sequer em retirá-las do ambiente primevo que as viu nascer - e a arte do Côa é escandalosamente topográfica - e entaipá-las num qualquer salão de museu. É que este par de equídeos (antepassados do Equus ferus przewaslski ?) do Mestre da Ribeira de Piscos, há mais de 20.000 anos que dialoga permanentemente com os montes agrestes que os cercam e enquadram e com quem passa e os remira interrogativamente, e a sua conservação é um desafio aos nossos tempos pós-modernistas.

quinta-feira, 10 de julho de 2008

Elementos de cronologia relativa na Arte do Côa - 01





A estratigrafia figurativa em arte rupestre aplica o mesmo princípio basilar da estratigrafia geológica e arqueológica: o que está por baixo é mais antigo do que aquilo que está por cima.
Quando a sobreposição é evidente, como no conhecido exemplo que agora apresento, não há quaisquer dúvidas sobre qual a gravura mais antiga e a mais recente. 
O maior dos pré-historiadores de arte do século passado que foi André Leroi-Gourhan, desconfiava das certezas das sobreposições na arte das grutas devido à dificuldade que surge muitas vezes em saber-se quais os traços mais antigos, particularmente entre gravuras incisas nos paredões calcários em ambientes cársticos. Em xistos, como é o caso do tipo de afloramentos que marginam o Côa, é mais fácil esta compreensão, embora tenhamos também aqui muitíssimos casos duvidosos e certezas pouco fiáveis.

Neste exemplo retirado da Rocha 1 (pormenor) da Vermelhosa, um pequeno vale lateral junto à foz do Côa, há duas figuras sobrepostas de épocas bem distintas. Para além da clara sobreposição das incisões, há também uma evidente e bem distinta coloração dos traços, sendo muito mais escuros e patinados os traços da cabra de traço múltiplo, que foi o primeiro motivo gravado.

Por outro lado e fazendo agora apelo à estilística, a primeira figura gravada é uma cabra de traço múltiplo, largo corpo sub-quadrangular, ventre pronunciado, um motivo típico do pós-naturalismo do período Magdalenense, que hoje, após as escavações de T. Aubry e do Parque Arqueológico do Vale do Côa da praia do Fariseu, com arte móvel estratigrafada, já vai sendo dos melhores conhecidos na estilística paleolítica do Côa. E que está abundantemente representado na envolvente à foz do Côa.

Sobreposto a este motivo, aparece um guerreiro montado a cavalo, também com os típicos atributos da arte da 2ª Idade do Ferro (bem identificada a partir dos meus trabalhos de 82/83 nas 23 rochas gravadas no terraço do Vale da Casa) desta região: cavalo alongado e dinâmico, traseira esboçada em forma de ferradura (primeiro sector a ser gravado), longo pescoço afilado à maneira ibérica  e crina alteada. Montado sem sela nem estribo, são evidentes os arreios com que o guerreiro dirige a montada. Este guerreiro, cintado em claro estilo ibérico, tem a cabeça rapada na parte superior e cabelos provavelmente apanhados na nuca e uma face em forma de bico de pássaro (com elmo? conf. Estrabão a propósito da sua descrição dos Lusitanos). Ergue um dardo com a ponta mais pesada apontada para diante e com uma base também em metal para assentamento.

Mais de 10.000 anos separam as duas figuras sobrepostas num mesmo sector de um grande painel, onde existem outras gravuras. Há no Vale do Côa, em especial nesta zona envolvente à sua desembocadura no Douro, muitas outras rochas com sobreposições do mesmo tipo,tudo inciso (e pouco mediático!), embora esta seja das mais interessantes. Elementos como estes são uma das bases arqueológicas primeiras e mais determinantes para se entender a evolução estilística e cultural dos ciclos rupestres do Côa. Outros há que complementam esta análise e afirmam a segurança das cronologias que hoje defendemos para a Arte do Côa.  

quarta-feira, 9 de julho de 2008

Três "tacanhos rabiscos" do Vale do Côa (complemento a MST e o Vale do Côa)




Foto: AMB. Desenhos: Fernando Barbosa/AMB

Miguel Sousa Tavares e o Vale do Côa


Com a devida vénia transcrevo do Expresso de 5 de Julho corrente a última diatribe de Miguel Sousa Tavares sobre o Vale do Côa:

"1 A história das gravuras de Foz Côa e da futura barragem do Sabor é uma lição exemplar dos malefícios da demagogia, servida na política. Guterres tinha acabado de chegar a primeiro-ministro e, dos disponíveis dos Estados Gerais, foi buscar para ministro da Cultura Manuel Maria Carrilho (que, depois e quando a nave socialista começou a meter água, foi o primeiro a saltar fora e, desmentindo a máxima de Guterres de que 'Roma não paga a traidores', acaba por ser compensado com o melhor tacho de todo o Estado português - o de embaixador na UNESCO). Juntos à época, Guterres e Carrilho resolveram inaugurar o mandato com uma decisão grandiosa: cancelava-se a barragem de Foz Côa, já em construção, e a benefício da preservação de uns tacanhos rabiscos numas pedras, que alguns 'sábios' e alguns oportunistas decretaram ser gravuras paleolíticas. E nem a desfeita causada pela maior autoridade mundial na matéria - que, levado a ver os rabiscos, sentenciou que o suposto Paleolítico teria entre trinta e trezentos anos - abalou o entusiasmo e a determinação dos então governantes em jurar que, a partir daí, o património cultural teria prioridade sobre tudo o resto. 

A barragem prevista foi, pois, suspensa e, quanto às gravuras, sabe-se o que aconteceu: as prometidas excursões de milhares e milhares de portugueses e europeus previstas jamais aconteceram; o novo modelo de 'turismo cultural', que ali se iniciaria, foi nado-morto; não aconteceram os trabalhos científicos anunciados nem o interesse mundial naquela fantástica descoberta. Em contrapartida, arranjou-se uns lugares vitalícios para funcionários do Paleolítico e, vá lá, vá lá, desistiu-se de lhes fazer a vontade gastando mais uns milhões num museu sem conteúdo e sem qualquer viabilidade económica. Mas a barragem fazia falta à EDP e fazia falta à regularização do curso navegável do Douro. Por isso, não avançando Foz Côa, avança a barragem do Sabor, cuja construção Sócrates acaba de adjudicar.

Acontece que o Sabor, para quem não conhece, é, talvez, o mais bonito rio de Portugal, o mais preservado, o mais selvagem. Se passassem nas televisões um filme sobre os rabiscos de Foz Côa e outro sobre o curso do Sabor, as pessoas ficariam chocadas ao perceber aquilo que se decidiu preservar e aquilo que se decidiu destruir. O suposto Paleolítico derrotou o presente e o futuro. A invocada cultura afogou a beleza - um contra-senso filosófico que nem o dr. Carrilho conseguiria explicar. Nós destruímos os rios (e em nome do 'ambiente', como explicou Sócrates) e depois gastamos dinheiro a construir, e ainda bem, fluviários para explicar às criancinhas o que é um rio. O problema é que, se as "gravuras não sabem nadar", os rios não sabem protestar. E é assim que se governa, quando o mais fácil é ceder à demagogia."

A espaços, MST atira-se ao Côa. Claro que a história do caso Côa e a sua repercussão na imprensa e televisões de todo o mundo não dá, ainda hoje, para haver aqui um nadinha sequer de bom senso. Foz Côa, parece, ou se ama ou se odeia. E a MST deu-lhe para o ódio! Como é de bom tom em colunista de tal encarte e ar azedo.
As opiniões são livres, é uma banalidade que se diz e repete. Mas convinha serem por norma fundamentadas, ainda para mais quando tratam casos como este em que, pelo que se lê, campeia a desinformação. Sobre a Arte do Côa há vários livros publicados e centenas de escritos técnico-científicos ou de simples divulgação. Mas a MST parecem bastar-lhe os recortes do extinto "Independente" do verão de 95 e está tudo dito. "Tacanhos rabiscos", "funcionários do paleolítico", "oportunistas", "sábios" aspados e outras atoardas do género é o que sobra de mais um dislate deste pretenso fazedor de opinião que afinal se deixou hipnotizar pelas opiniões, essas sim oportunistas (mas nem MST saberá porquê), daquele que MST clama como "a maior autoridade mundial na matéria"!!! Tanto disparate por junto!! 
Que dizer de tanta insensatez e agressividade? Que MST é um ignorante nos assuntos do Côa é o mínimo. Que é um assumido ignorante está claro, pois ao emitir tão verrinosas opiniões não se digna sequer informar-se do que não conhece. Que, porque não convém ao seu discurso trauliteiro, não diz uma palavra sequer da razão porque teria a UNESCO classificado como Património da Humanidade tal pobre colecção de "tacanhos rabiscos"! Que MST não soube sequer plagiar correctamente as cronologias do Sr. R. Bednarik a quem tanto crédito concede, é outra evidência. Pela amostra, calculo que a generalidade dos artigos de opinião de MST enfermem da mesma carga de mal feito trabalho de casa e tenham para os leitores apenas mais um efeito de desinformação!
Explicar-lhe a importância arqueológica e patrimonial da Arte do Côa não é agora o que conta e, como já disse, está mais que explanada entre a comunidade científica ou entre o simples cidadão bem informado, até porque a sua não importância e descredibilidade parece ser para MST uma questão de fé. Seria falar-lhe em mandarim que calculo não domine, como não domina os assuntos da pré-história da arte. 
Em jeito de fecho e ao invés de continuar no mesmo tipo de linguagem desabrida e ofensiva do escrito de MST, deixem-me antes apresentar aqui, escolhidas entre muitas centenas de exemplos, três situações singulares dos "rabiscos" do Vale do Côa, de três períodos bem distintos, entre a fase antiga ou arcaica paleolítica (± 25.000 anos) e a mais recente arte da Idade do Ferro (2ª metade do 1º milénio a.C.). 

Entre o primeiro (foto de auroque da R. 1 do Fariseu) e o terceiro exemplos medeiam portanto mais de 20.000 anos. Apreciem-se, para além da beleza estética das figuras, as grandes variações estilísticas entre estes três motivos, que reflectem escolas de arte bem distintas, mais naturalistas e sensoriais as duas de idade paleolítica, com a notável concisão do traçado recto e aparentemente desconstruído do cervídeo da Idade do Ferro. E para se inventar este radical jogo de formas sidéricas passaram milénios de transformações culturais nas gerações que se foram sucedendo no vale (já pensou como se chegou da Renascença à arte impressionista e porque não vem esta antes da outra?). De muitas delas há em Foz Côa bons exemplos, gravados, incisos ou mesmo pintados, pois o Côa guarda um dos mais longos ciclos de arte rupestre da Europa. Quer melhores razões para não se ter construído um grande paredão junto ao sítio da Canada do Inferno que tudo submergiria, descaracterizaria e, eventualmente, destruiria ? 
E... já agora, o Sabor não tem nada a ver com isto. É outra história. E o rio não é melhor nem mais selvagem do que o Côa. É igual e tão valioso quanto o Côa e, como ele, deveria ser preservado na sua integralidade. E até tem arte rupestre paleolítica! Calculo que não conheça bem nem um nem outro. Estará, mais uma vez, a falar por ouvir dizer! Será assim?




terça-feira, 8 de julho de 2008

segunda-feira, 7 de julho de 2008

A Arte no Tempo

A memória mais arcaica da humanidade está registada na simbólica rupestre, seja ela gravada, pintada ou até esculpida. A ânsia de transferir para a rugosidade da pedra conceitos tão imateriais quanto perenes como sejam a codificação da imagem de um animal, de uma espiral ou uma qualquer representação humana é um fenómeno tão universal como a organização da vida em sociedade por mais recuados que sejam os tempos. 
A tomada de consciência da importância da arte rupestre para o conhecimento do ordenamento social e do pensamento do passado é relativamente recente. Por isso, o lote de sítios rupestres que há pouco mais de 30 anos começaram a ser classificados pela UNESCO como Património da Humanidade vai alargando-se de ano para ano. 
A arte rupestre ganhou foros de cidadania em Portugal com a celebrada polémica do Côa, ou gravuras versus barragem, como ficou conhecida na linguagem corrente. Na que foi sem dúvida a mais importante polémica político-arqueológica do século XX português. E isso deixa marcas, porque o Côa, parece, ou se ama ou se detesta... 
Mas o nosso país conserva ainda um vasto repositório rupestre disseminado por cimos serranos e vales fluviais, na sua generalidade ainda por identificar e/ou estudar. E que vão muito para além do Côa. Porém, este é o lugar cimeiro do nosso tempo rupestre! Por isso, nele nos deteremos mais amiúde.
Infelizmente, não pelas melhores razões, a grande Arte do Côa continua a ser muito desconhecida da generalidade das gentes. Sendo o nosso mais importante conjunto de sítios monumentais da pré-história antiga, razões várias têm impedido a sua fruição (e compreensão!) à grande maioria dos seus visitantes "profanos". Quer porque os sítios são de difícil acesso e muito esparsos em vastíssimo território, quer porque no Côa mais de 99% dos seus grafismos são gravados, desgastados pelas pátinas do tempo, delidos já quase no rio do esquecimento. 
Por outro lado, o que torna tão importantes os sítios do Côa é afinal a omnipresença da sua arte paleolítica, e esta é uma arte da ilusão, um permanente desafio mesmo para os que nela vão persistentemente trabalhando, como é o meu caso. O jogo entre forma e conteúdo em nenhum lugar dos nossos sítios rupestres atinge um tal grau de profundidade como, por exemplo, na paleta de auroques, cabras e humanos animalescos da notável Rocha 24 da foz da Ribeira de Piscos, uma das mais exigentes rochas decoradas da pré-história em Portugal. 
E o entendimento leigo da arte plistocénica do Côa exige também ele tempo e disposição ao entendimento. Para que não continue a vigorar no "reino cadaveroso" a luxúria da incompreensão.
A meses de inaugurarmos o tão desejado Museu do Côa que, estou seguro, para muitos será uma revelação, neste blogue se irá dando conta, com forte apelo à imagem, de alguns aspectos arqueologicamente mais interessantes em particular da sua arte paleolítica, afinal a justificação primeira para se ter abandonado uma barragem já em construção e ter o nosso país, por isso mesmo, suportado a maior indemnização paga no mundo para salvar sítios rupestres. Isto que devia ser motivo de orgulho para Portugal e suas gentes, continua ao invés a ser antes causa de tanta incompreensão e jogos de palavras mais ou menos aceradas, que apenas atribuo à ignorância do que se discute e/ou à inconstância dos tempos.
O Côa é pois dominante. Obsessivamente dominante. Mas não exclusivo. Como se verá...