sexta-feira, 11 de julho de 2008

Obras-Primas da Arte do Côa - Rocha 1 da Ribeira de Piscos








Explique-se a que é, em minha opinião, uma das obras-primas absolutas da arte paleolítica do Côa. 

Num painel vertical localizado na margem esquerda da Ribeira de Piscos, a c. de 200 metros da sua foz (Foto 1), está uma das cenas mais emblemáticas de toda a nossa arte paleolítica. De referir que este sítio é uma das três estações rupestres presentemente abertas ao público que visita o Parque Arqueológico, de entre os 44 sítios rupestres que até ao presente aqui temos identificado.
 
Neste painel estão apenas figuradas duas representações associadas, constituindo uma cena, o que não é muito vulgar em arte paleolítica.  Dois equídeos cruzam as cabeças, naquilo que os etólogos designam como um acto de pré-acasalamento. A genialidade da cena e da sua concepção é perceptível pelos seguintes factores:

1 - O artista escolhe um painel topograficamente relevante na envolvente e em que a superfície do espaço operativo (área de gravação) não é totalmente plana, mas antes ligeiramente convexa na zona escolhida para a inserção das gravuras (Foto 2). Isto concederá aos motivos um aspecto tridimensional, a meio caminho entre a gravura simples e a escultura! Esta integração das formas naturais nas obras de arte é uma característica bem conhecida da arte paleolítica em gruta, mas menos vulgar na arte de ar livre, toda em xistos. No Côa outro exemplo relevante desta procura da tridimensionalidade é o peixe da rocha 5 da Penascosa, a que me referirei em outra ocasião.
 
2 - Seleccionado o sector a gravar - em arte rupestre picotada o artista não se pode enganar e corrigir o traço! -, é evidente que na cabeça do gravador estão já idealizados os motivos, pois os cavalos são desenhados seguindo as linhas de diaclases do xisto, aqui ligeiramente subverticais, como o serão as gravuras, que desta forma ganharão também algum dinamismo.

3 - Começando o desenho da esquerda para a direita, o que se percebe pela análise técnica das picotagens (conf. desenho), são traçadas em primeiro lugar as duas linhas cérvico-dorsais, quase simetricamente em dois longos S tombados, como se fora uma forma estilizada de ave. Cruzam-se seguidamente as cabeças, primeiro a do cavalo da direita e depois a da esquerda. Completa-se depois todo o contorno em perfil absoluto do cavalo mais à direita. Toda a gravação é feita da esquerda para a direita. O cavalo da esquerda é deixado intencionalmente incompleto, o que por vezes não é logo compreendido pelos visitantes. Mas não precisa de mais qualquer traço! São criações como esta, absolutamente "modernas" na sua conceptualidade, que me levam a considerar os artistas paleolíticos do Côa como "gente do nosso tempo". E por isso classifico a Arte do Côa como "Arte Contemporânea", seguindo neste caso o velho título de Breuil!

4 - O último traço gravado é a pequena linha entre o final da cauda curta e a terminação da perna posterior - uma só perna por par, como é típico no Côa. Traço que pode ser lido como que ligado acentradamente à cauda, à perna ou, à maneira dos nossos dias... como se fora a "assinatura" do ignoto artista, muito provavelmente Solutrense! Uma perfeita arte da ilusão. E uma criação notável daquele a quem gosto de chamar o Mestre da Ribeira de Piscos. 

5 - Estilisticamente, a forma volumosa e quase atarracada do cavalo da direita liga-se muito aos formalismos e cânones da arte Solutrense, pertencendo de qualquer forma à fase antiga da Arte do Côa (período Gravetto-Solutrense, anterior a c. de 20.000 BP). Mas, o que aqui importa realçar é que esta forma é também ela perseguida na tal procura da tridimensionalidade (conf. foto 2).

Esta genial peça artística do tempo paleolítico do Vale do Côa está isolada num painel onde, ao contrário do que é comum na nossa fase antiga, não há quaisquer outros motivos sobrepostos. Mirando e remirando vezes sem conta este painel (fiquei siderado quando pela primeira vez o observei em Janeiro de 95) e conhecendo bem a criatividade e as "armadilhas" interpretativas dos artistas do Côa, já tenho pensado e mesmo sabendo que os nossos conceitos de respeito pelas obras de arte nada terão a ver com os dos homens da última Idade do Gelo, se não seria a absoluta originalidade desta cena da Ribeira de Piscos que afastou deste painel a tentação da sobreposição de outros motivos!

São afinal obras tão criativas e únicas como esta que me levam a interrogar-me, como é possível que haja gente ainda tão empenhada em submergi-las! Ou sugerir sequer em retirá-las do ambiente primevo que as viu nascer - e a arte do Côa é escandalosamente topográfica - e entaipá-las num qualquer salão de museu. É que este par de equídeos (antepassados do Equus ferus przewaslski ?) do Mestre da Ribeira de Piscos, há mais de 20.000 anos que dialoga permanentemente com os montes agrestes que os cercam e enquadram e com quem passa e os remira interrogativamente, e a sua conservação é um desafio aos nossos tempos pós-modernistas.

1 comentário:

Anónimo disse...

Sou daqueles que acham que não passam de rabiscos alguns livros de alguns que acham que esta arte do Côa é... rabiscos. Aliás, a única forma "objectiva" de comparar uns rabiscos dos outros, no pensamentos dos rabiscantes sobrevivos (que os do Côa já só se defendem com o que rabiscaram e consigamos preservar), é o "supremo" critério das vendas. Uns vendem-se melhor do que outros. Mas, é claro, uns vendem em Lisboa e de Lisboa, que sempre é a capital. Outros, no extremo interior, que é a "pobríncia". Que pena não tenham emigrado para Lisboa os rabiscosos do Côa... Outro galo cantaria aos rabiscos. Que nas capitais há mercado para tudo, como se nota.
A.Alves