A estratigrafia figurativa em arte rupestre aplica o mesmo princípio basilar da estratigrafia geológica e arqueológica: o que está por baixo é mais antigo do que aquilo que está por cima.
Quando a sobreposição é evidente, como no conhecido exemplo que agora apresento, não há quaisquer dúvidas sobre qual a gravura mais antiga e a mais recente.
O maior dos pré-historiadores de arte do século passado que foi André Leroi-Gourhan, desconfiava das certezas das sobreposições na arte das grutas devido à dificuldade que surge muitas vezes em saber-se quais os traços mais antigos, particularmente entre gravuras incisas nos paredões calcários em ambientes cársticos. Em xistos, como é o caso do tipo de afloramentos que marginam o Côa, é mais fácil esta compreensão, embora tenhamos também aqui muitíssimos casos duvidosos e certezas pouco fiáveis.
Neste exemplo retirado da Rocha 1 (pormenor) da Vermelhosa, um pequeno vale lateral junto à foz do Côa, há duas figuras sobrepostas de épocas bem distintas. Para além da clara sobreposição das incisões, há também uma evidente e bem distinta coloração dos traços, sendo muito mais escuros e patinados os traços da cabra de traço múltiplo, que foi o primeiro motivo gravado.
Por outro lado e fazendo agora apelo à estilística, a primeira figura gravada é uma cabra de traço múltiplo, largo corpo sub-quadrangular, ventre pronunciado, um motivo típico do pós-naturalismo do período Magdalenense, que hoje, após as escavações de T. Aubry e do Parque Arqueológico do Vale do Côa da praia do Fariseu, com arte móvel estratigrafada, já vai sendo dos melhores conhecidos na estilística paleolítica do Côa. E que está abundantemente representado na envolvente à foz do Côa.
Sobreposto a este motivo, aparece um guerreiro montado a cavalo, também com os típicos atributos da arte da 2ª Idade do Ferro (bem identificada a partir dos meus trabalhos de 82/83 nas 23 rochas gravadas no terraço do Vale da Casa) desta região: cavalo alongado e dinâmico, traseira esboçada em forma de ferradura (primeiro sector a ser gravado), longo pescoço afilado à maneira ibérica e crina alteada. Montado sem sela nem estribo, são evidentes os arreios com que o guerreiro dirige a montada. Este guerreiro, cintado em claro estilo ibérico, tem a cabeça rapada na parte superior e cabelos provavelmente apanhados na nuca e uma face em forma de bico de pássaro (com elmo? conf. Estrabão a propósito da sua descrição dos Lusitanos). Ergue um dardo com a ponta mais pesada apontada para diante e com uma base também em metal para assentamento.
Mais de 10.000 anos separam as duas figuras sobrepostas num mesmo sector de um grande painel, onde existem outras gravuras. Há no Vale do Côa, em especial nesta zona envolvente à sua desembocadura no Douro, muitas outras rochas com sobreposições do mesmo tipo,tudo inciso (e pouco mediático!), embora esta seja das mais interessantes. Elementos como estes são uma das bases arqueológicas primeiras e mais determinantes para se entender a evolução estilística e cultural dos ciclos rupestres do Côa. Outros há que complementam esta análise e afirmam a segurança das cronologias que hoje defendemos para a Arte do Côa.
2 comentários:
Esta questão dos filiformes (creio que é o caso das imagens sobrepostas em questão) sempre me levantam algumas questões (que a minha ausência da frequência da literatura da especialidade poderá ajudar a explicar).
Claro que há sempre a aproximação fenomenológica, em que o que poderá contar premordialmente é o acto (e respectivo contexto) de fazer a gravura e não tanto a sua visibilidade. Mas se não for isso (ou exclusivamente isso) como se comportaria a "funcionalidade" destas imagens. Imagino que terá sido difícil perceber na íntegra a figura do cavaleiro (mesmo com as diferenças de patina). Como seria ela visível na época? Seriam pintadas?Poderá esta hipótese ser testada?Poderia ser pintada? E como interpretar a sobreposição? Qual o papel catalizador que pode ser reservado à gravura paleolítica na gravura do ferro?
Caro Valera
O "acto" conta, mas não deverá ser em exclusivo determinante, em especial na Idade do Ferro, onde as motivações deverão ser muito diferentes das de tempos paleolíticos.
Não é difícil entender na íntegra a figura do cavaleiro, que tem uma pátina muito esbranquiçada. É de tão fácil percepção que até foi desenhado de dia e sem o apoio de qualquer luz rasante. Foi muito mais difícil desenhar todos os traços da gravura paleolítica. Ambas as gravuras seriam bem visíveis na época em que foram concebidas. Não creio que qualquer delas tenha sido pintada. A pintura sobre gravura no Vale do Côa seria aplicada exclusivamente nas gravuras da fase antiga, as de traço profundo, picotadas, de grandes dimensões, de época Gravetto-Solutrense. A única confirmação que temos disto é-nos dada pelos auroques picotados e pintados na rocha 6 da Faia. Porém, há outros auroques na rocha 1 de Vale Figueira, com formas picotadas intencionalmente incompletas que sugerem possam ter sido completadas por pinturas, que desapareceram. Há outros exemplos semelhantes no Vale do Côa.
Quanto à "funcionalidade" de qualquer destas gravuras, aí está o problema fundamental de toda a arte rupestre pré-histórica. O que vai para além das tipologias, do estudo das estilísticas e das evidências arqueográficas... E a sua explicação nunca deixará de ser a nossa explicação. Sempre dependente dos padrões de análise do nosso próprio tempo (e da nossa condição humana!). Quando na Austrália ouvi da boca de um aborígene uma explicação lógica para uma cena de um abrigo pintado com uma temática idêntica à da nossa arte esquemático-simbólica, percebi claramente quão relativas e vãs são as nossas explicações. É que a explicação do aborígene actual também podia mudar de dia para dia e consoante o tipo de visitante. Estava errada... mas estava sempre certa...
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