quinta-feira, 28 de agosto de 2008

Um desencantado apelo à revolta no Douro

in Público, 27 Agosto 2008

Claro que Gaspar Martins Pereira não nos pede que choremos! Ou que apenas lamentemos as incúrias e os malefícios do centralismo, as perversões democráticas, as mediocridades reinantes, ou que denunciemos mais um qualquer jogo de interesses na voragem política do momento. Para mim, o seu artigo é antes um grito d'alma de alguém que já não acredita e por isso formula... um grito de revolta! Sem mais. Apoiado!

Levamos séculos de lamentos, a prazo há sempre alguém que vai anunciando que o país não é viável, mas lá se vai andando. Quando hoje me deliciava, ainda e sempre, com a mais rija prosa em português vernáculo que é a do alentejano Fialho de Almeida, eis que, palavras postas na garganta de um cruento e imaginário D. Carlos de Bragança, vergado ainda ao peso do ceptro e do arminho, tropeço nesta pérola: "Aos que pois me lançam em rosto a dinastia mórbida de D. João IV e descendentes, contraporei essoutras de políticos inábeis, de gentis-homens cínicos, de burguesia sorna e de plebe sem vergonha, que é a história da sociedade portuguesa de há trezentos anos para cá. Povos e reis, podemo-nos dar as mãos pelo conjunto homogéneo que fazemos, repartir quinhões iguais na glória de havermos feito deste rectângulo de paisagem um dos manicómios mais típicos da degenerescência humana em desfilada prá demência" (Os Gatos, Vol. 17). Bom, eu não chego a tanto, mas lá que apetece, isso apetece!!

Dizia Ramalho Ortigão, em diatribe anti-republicana referindo-se à gestão de uma das democracias parlamentares que então nos servia de modelo (a França), que nela só havia dois partidos: o dos "satisfeitos", governantes e sua corte de interesses instalados, e o dos "descontentes", cujo chefe, Boulanger, atingiu tal popularidade na capitalização do descontentamento, que tinha consigo a França! Claro que Ramalho fustigava a nossa República nascente que então procurava legitimar-se, depois de, muito apropriadamente, alguém se ter encarregue da remoção sangrenta do rei.
 
Isto, afinal, lembra-me qualquer coisa, até porque em Portugal, um século andado, continua a haver apenas os tais dois partidos singulares (o resto é paisagem não classificada) que já tiveram até o cuidado de, convenientemente, terem removido sem dor as ideologias dos seus pré-programas eleitorais.

E que tem isto a ver com o Douro, a linha do Tua e a actual polémica instalada de sucessivos acidentes-incidentes e o pré-anúncio de mais uma barragem? É que afinal não mudámos assim tanto! E esta história do Tua - caminho de ferro, barragem, Património Mundial -  é mais um sinal da perversão democrática em que vivemos onde, aqui com mais ou menos dor, a gente do partido dos satisfeitos, lá vai conseguindo levar as águas para donde mais lhes convém. E os outros lá vão protestando, com mais ou menos indignação...
 
Só espero que esta estória do último acidente-incidente do Tua não acabe como o avião do Sá Carneiro ou o assassinato de D. Carlos, perdida nas "brumas da memória" e nos ensimesmados caminhos ínvios da justiça e dos inquéritos sem conclusão ou com decisão combinada em voto parlamentar. Ao primeiro, porque morto em acidente/atentado/atentado/acidente/atentado com um avião, vá de agarrar-lhe no nome e dá-lo a um aeroporto; ao segundo, assassinado como uma fera no Arsenal de Lisboa, a República fez dos seus assassinos (sem mandantes/com mandantes?) figuras elogiadas em museu. E no Tua? Sai mais uma barragem pr'a mesa do canto e depois um museuzinho para mostrar como era lindo aquele vale e que trabalhão dera construir aquela ferrovia nos idos de oitocentos!!??

Uma barragem num rio é como um trombo numa veia.


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