domingo, 3 de agosto de 2008

Obras-Primas da Arte do Côa 03 - Rocha 3 da Vermelhosa


Não é só na arte paleolítica do Côa que algumas gravuras se destacam e podem ser consideradas singulares entre o universo estético dos artistas pré-históricos. Hoje apresento um conjunto da Idade do Ferro com uma das cenas mais emblemáticas de todo este ciclo artístico na região do Côa e Alto Douro. Trata-se da Rocha 3 da Vermelhosa, um grande painel de xistos oxidados com uma coloração acastanhada. Este sítio é um pequeno mas fundo vale adjacente ao Douro, junto à foz do Côa. Não está em visita pública no Parque Arqueológico do Vale do Côa, mas após a abertura do Museu do Côa deverá constar de um dos seus percursos de visitas exteriores.

Publiquei esta cena no meu primeiro livro sobre a Arte do Côa (1999), tendo-a considerado como uma eventual "cena ritualizada de carácter mitológico" (p. 167). Hoje conhecemos melhor a dispersão das rochas com gravuras da 2ª Idade do Ferro, embora o seu levantamento esteja muito atrasado, pois tem-se dado sempre mais importância ao estudo da arte paleolítica.
Mas o que conhecemos é já suficiente para considerarmos este painel inciso da Vermelhosa como um dos melhores de toda a Idade do Ferro regional e nele quero destacar desde logo esta cena de luta mas também a grande figuração de guerreiro que está na parte superior do conjunto (e que apresentarei depois).

O que torna esta cena de luta uma representação singular, para além das figuras estarem bem caracterizadas através do armamento que transportam, é o facto de, ao contrário da generalidade dos motivos da Idade do Ferro, estarem artisticamente perspectivadas. Como se sabe os padrões estilísticos da arte rupestre da Idade do Ferro são muito menos naturalistas do que os paleolíticos, as figuras por vezes são apenas esboçadas sem grande equilíbrio de formas, um estilo que chega a aproximar-se de algumas expressões do cubismo do século passado!


Guerreiro da direita. Atente-se na forma da cabeça com uma face em forma de bico de pássaro. E repare-se na intencional ligação ao cavalo, aqui claramente um símbolo de prestígio, através de uma arreata ziguezagueante. A forma de representação do cavalo é também típica do ciclo sidérico do Côa, destacando-se o longo pescoço, quase afilado, à maneira da arte ibérica e celtizante, conferindo alguma elegância ao motivo. A forma da parte posterior é já uma evolução da clássica forma em ferradura, que aqui, ao contrário do que é comum, não foi a primeira forma do equídeo a ser gravada, mas a última. Daí o seu carácter estilisticamente menos ortodoxo.


Desenho: Fernando Barbosa/AMB
Fotos: AMB/Manuel Almeida

Desde que comecei a estudar a arte da Idade do Ferro nesta região a partir do sítio do Vale da Casa, sempre atribuí a generalidade destes motivos à 2ª Idade do Ferro, em particular pela presença de alguns modelos de armas metálicas, muito em especial as falcatas (Rocha 10 do Vale da Casa), uma arma de introdução tardia no mundo ibérico, mas que nele teve uma grande expansão. Não encontrei até hoje argumentos para alterar esta cronologia. Pelo contrário, cenas como esta do sítio da Vermelhosa, mais vincam esta cronologia. A cena que aqui apresentamos é típica de uma sociedade violenta e guerreira, eventualmente muito hierarquizada e por isso gosto de considerar os tempos violentos da 2ª Idade do Ferro como uma génese de uma espécie de "feudalismo". E isto também pelo facto de nela estarem abolidos o arco e a flecha, consideradas armas traiçoeiras, como lembra Quezada Sanz para o mundo Ibérico em geral. É um tipo de sociedade como a descrita nas narrações homéricas, onde as querelas entre povos se poderiam eventualmente resolver à maneira de Aquiles e Heitor, que assim se tornam heróis quase divinizados. Poderá esta cena da Vermelhosa figurar uma qualquer forma de resolução de uma dessas contendas? E que, como é próprio deste tipo de sociedades, rapidamente entrou no imaginário mitológico? Transportados para o nosso tempo, que pensar das imagens repetidas até à exaustão nas nossa televisões das vitórias olímpicas (uma tradição da Idade do Ferro!) de Carlos Lopes e Rosa Mota? Não serão afinal uma forma moderna desta cena de luta de dois guerreiros no sítio da Penascosa, gravada por um imaginativo e talentoso artista da nossa 2ª Idade do Ferro? 

É costume paralelizarem-se estes tipo de guerreiros com a clássica descrição de Estrabão dos costumes dos Lusitanos, nomeadamente do seu Livro III da Geografia da Ibéria. Em postagens posteriores apresentarei alguns bons exemplos de guerreiros do Côa em paralelo com os comentários de Estrabão.

1 comentário:

Gonçalo Cruz disse...

Excelente post.
Esperamos uma comparação descritiva dos guerreiros do Côa, com o texto de Estrabão (que aliás, já tive oportunidade de ouvir).