sábado, 29 de novembro de 2008

Para uma crisologia em tempos interessantes

Público, 28 Nov. 2008

Benigna reflexão do ex-ministro Campos e Cunha, ao encontro do que muitos de nós pugnam, quais vozes pregando no deserto. E que remete antes de mais para o papel político da Cultura, dramaticamente menorizada numa época de megalomania e voluntarismo financeiros, como parece ser o exemplo do "monstro do TGV" que, como é facilmente perceptível, sai fora (e de que maneira) do princípio da sustentabilidade aqui defendido. Princípio que tão bem se aplica ao Vale do Côa, uma pérola apesar de tudo em fase de lapidação, pese embora aqui continuem a faltar algumas das "ferramentas" do progresso. 

O abandono e/ou o não aproveitamento científico-turístico de muitas das nossas jazidas arqueológicas é, também ele, um problema de mentalidade. Uma forma de estar. E claro que também das políticas orçamentais. Por isso sempre recusei o argumento "de que não há dinheiro"! Porque ele existe. Está é fora de sítio.

Repare-se que a maior parte das nossas grandes descobertas arqueológicas não se devem a projectos consistentes e de raiz, mas só são reveladas e estudadas (quantas vezes nem isso) perante as ameaças de uma ou outra grande obra pública, seja ela uma barragem, uma auto-estrada, a conduta do gás, ou... o TGV. Consequentemente, a valorização desses sítios fica desde logo diminuída e também ela ameaçada, quantas vezes apenas memorizada em singulares e pobres (porque descontextualizados) "centros de interpretação" ou "casas da memória". O caso da Arte do Côa é verdadeiramente uma excepção - o mesmo não aconteceu infelizmente com a Arte do Tejo na região de Fratel -, mas o seu salvamento, embora tarde em ser verdadeiramente exponenciado nos termos em que Santos e Cunha aqui escreve, foi, apesar de tudo, feito. E com isso enriqueceu a região e o país.
  
Mas Portugal nunca produziu uma verdadeira carta arqueológica nacional. Em 1995, durante um debate no Instituto Superior Técnico em que participava com engenheiros a propósito do problema da barragem de Foz Côa, um desses engenheiros questionava-se (incrédulo) porque não teria até então o país elaborado uma carta arqueológica que prevenisse problemas e situações como a que estava a acontecer no Côa. Como tinha uma carta de solos, uma carta ecológica, uma carta geológica (mais de um século a completar)... Pois se até anos recentes nem um verdadeiro curso de arqueologia havia. E a arqueologia foi sempre em Portugal (pelo menos até há pouco) uma espécie de ciência menor que tanto podia ser experienciada por médicos, engenheiros, economistas, advogados e até... historiadores. Honrosas profissões liberais que na arqueologia encontravam um escape.

Pensamentos que explicam bem porque tão cedo o ex-ministro Campos e Cunha abandonou o barco de um governo de maioria absoluta. Os ventos, nestes tempos interessantes (para usar a expressão de Hobsbawm), não sopram de facto tanto ao encontro dos esteios da sustentabilidade quanto para os da insensatez financeira e da desmemória...

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