sábado, 13 de junho de 2009

Lascaux e a Pré-História do Futuro

Aproveitando uns dias de férias e um amável convite da Câmara Municipal de Vila Nova de Foz Côa, pude cirandar por alguns dos mais emblemáticos sítios de arte parietal do paleolítico europeu. Observando realidades distantes e tão próximas, analisando modelos de gestão... Claro que teria de passar por Lascaux.

Uma visita a Lascaux é sempre uma experiência perturbante para qualquer pré-historiador de arte. Esta gruta, admiravelmente decorada pelo imaginário paleolítico há mais de 17.000 anos, está há décadas (foi redescoberta em 1940) definitivamente inscrita no código genético da cultura ocidental. É provavelmente o mais significativo dos monumentos da nossa arte das origens. Classificá-la de sublime e considerar geniais os seus artistas é dizer pouco, muito pouco. Objecto de inúmeros estudos, ainda hoje surge como uma matéria do espanto e permanece um enigma ao entendimento sistémico da nossa arte fóssil.

Mas é um sítio ameaçado por décadas de ignorância e alguma incúria, muito em especial pelas maciças visitas turísticas das décadas de 40, 50 e até 60 do século passado. Que alteraram irremediavelmente os delicados ecossistemas do interior da cavidade que durante milénios tinham permitido a conservação dos seus admiráveis frescos e inúmeras gravuras (muitas delas reveladas pela paciente minúcia dos levantamentos do Abade Glory). E propiciaram o aparecimento de sucessivas e destruidoras pragas: desde as doenças "verde e negra" de algas e fungos aos actuais "cogumelos assassinos"! E o encerramento definitivo da gruta.

Compreende-se assim, que já em 1984 e frente ao incremento da poderosa indústria turística, tenha sido inaugurada uma réplica fac-similada de parte da gruta original (a Sala dos Touros e o Divertículo Axial, onde se concentram grande parte das pinturas), ela própria elaborada e afundada a cerca de 200 metros da antiga entrada da gruta. E parece estar para breve a (re)elaboração de uma outra réplica fac-similada.

Esta é a entrada actual da gruta original (o próprio sítio é também ele vedado aos visitantes), selada para sempre aos olhares profanos do turismo de circunstância:

Mas ao lado, rodeada por um bem tratado enquadramento florestal, típico de um país
ordenado como é a França rural actual, o acolhimento em Lascaux II é agradável. Os visitantes, encaminhados da histórica aldeia de Montignac, rapidamente se deixam envolver por esta floresta de encantamento, talvez ainda mais agradável em época invernosa.

E no interior de Lascaux II, após uma introdução à ambiência pré-histórica do tempo de Lascaux e uma passagem visual pelas técnicas de execução dos artistas pré-históricos, abre-se a rotunda dos touros e o pequeno corredor do divertículo axial.
Claro que são estas as pinturas que aqui se observam, embora para um leigo a diferença para os originais não pareça perceptível:



Esta é a Lascaux do presente, gerida pela empresa Sémitour Périgord, uma sociedade anónima de economia mista. Que, para além de Lascaux II, gere em pacote também o Gouffre de Padirac (uma das grandes curiosidades geológicas de França), a Gruta do Grand Roc, Le Thot, o Abri Pataud, os Castelos de Biron, de Fenelon, de Monbazillac, de Puymartin e de Bourdeilles, o Claustro de Cadouin, o Castelo e Jardins de Losse e os Jardins de Eyrignac e do Imaginário. Ao visitante interessado é fornecido uma espécie de passaporte e, após quatro visitas a qualquer um destes sítios, é oferecida uma... garrafa de vinho do Périgord.

Como me dizia um amigo das Eyzies, a pré-história hoje vende extraordinariamente em França e é um importantíssimo agente da indústria do turismo e do lazer. E Lascaux II é um dos seus lugares cimeiros. Mas tudo servido por décadas de planeamento e financiamentos articulados, com verdadeiros Ministérios da Cultura, onde as ondas de choque da actual crise mundial mal se sentem. Que é afinal o que falta em Portugal. Extrapolando para o Museu do Côa e os (desconhecidos?!) modelos de gestão em que terá de enquadrar-se, parece faltar-nos ainda quase tudo. Excepto a extraordinária qualidade da Arte do Côa que a muitos em Portugal parece ainda incomodar. Longe das patéticas campanhas de propaganda da EDP das últimas semanas, é tempo de repensarmos seriamente os modelos de gestão do também rico património histórico e arqueológico que guardamos no nosso interior mais recôndito. Temos tanto e tanto nos falta...

Fotos: AMB e BN

1 comentário:

Renata Bomfim disse...

Belissimas imagens!! parabéns!!!
Renata