Com a devida vénia transcrevo do Expresso de 5 de Julho corrente a última diatribe de Miguel Sousa Tavares sobre o Vale do Côa:
"1 A história das gravuras de Foz Côa e da futura barragem do Sabor é uma lição exemplar dos malefícios da demagogia, servida na política. Guterres tinha acabado de chegar a primeiro-ministro e, dos disponíveis dos Estados Gerais, foi buscar para ministro da Cultura Manuel Maria Carrilho (que, depois e quando a nave socialista começou a meter água, foi o primeiro a saltar fora e, desmentindo a máxima de Guterres de que 'Roma não paga a traidores', acaba por ser compensado com o melhor tacho de todo o Estado português - o de embaixador na UNESCO). Juntos à época, Guterres e Carrilho resolveram inaugurar o mandato com uma decisão grandiosa: cancelava-se a barragem de Foz Côa, já em construção, e a benefício da preservação de uns tacanhos rabiscos numas pedras, que alguns 'sábios' e alguns oportunistas decretaram ser gravuras paleolíticas. E nem a desfeita causada pela maior autoridade mundial na matéria - que, levado a ver os rabiscos, sentenciou que o suposto Paleolítico teria entre trinta e trezentos anos - abalou o entusiasmo e a determinação dos então governantes em jurar que, a partir daí, o património cultural teria prioridade sobre tudo o resto.
A barragem prevista foi, pois, suspensa e, quanto às gravuras, sabe-se o que aconteceu: as prometidas excursões de milhares e milhares de portugueses e europeus previstas jamais aconteceram; o novo modelo de 'turismo cultural', que ali se iniciaria, foi nado-morto; não aconteceram os trabalhos científicos anunciados nem o interesse mundial naquela fantástica descoberta. Em contrapartida, arranjou-se uns lugares vitalícios para funcionários do Paleolítico e, vá lá, vá lá, desistiu-se de lhes fazer a vontade gastando mais uns milhões num museu sem conteúdo e sem qualquer viabilidade económica. Mas a barragem fazia falta à EDP e fazia falta à regularização do curso navegável do Douro. Por isso, não avançando Foz Côa, avança a barragem do Sabor, cuja construção Sócrates acaba de adjudicar.
Acontece que o Sabor, para quem não conhece, é, talvez, o mais bonito rio de Portugal, o mais preservado, o mais selvagem. Se passassem nas televisões um filme sobre os rabiscos de Foz Côa e outro sobre o curso do Sabor, as pessoas ficariam chocadas ao perceber aquilo que se decidiu preservar e aquilo que se decidiu destruir. O suposto Paleolítico derrotou o presente e o futuro. A invocada cultura afogou a beleza - um contra-senso filosófico que nem o dr. Carrilho conseguiria explicar. Nós destruímos os rios (e em nome do 'ambiente', como explicou Sócrates) e depois gastamos dinheiro a construir, e ainda bem, fluviários para explicar às criancinhas o que é um rio. O problema é que, se as "gravuras não sabem nadar", os rios não sabem protestar. E é assim que se governa, quando o mais fácil é ceder à demagogia."
A espaços, MST atira-se ao Côa. Claro que a história do caso Côa e a sua repercussão na imprensa e televisões de todo o mundo não dá, ainda hoje, para haver aqui um nadinha sequer de bom senso. Foz Côa, parece, ou se ama ou se odeia. E a MST deu-lhe para o ódio! Como é de bom tom em colunista de tal encarte e ar azedo.
As opiniões são livres, é uma banalidade que se diz e repete. Mas convinha serem por norma fundamentadas, ainda para mais quando tratam casos como este em que, pelo que se lê, campeia a desinformação. Sobre a Arte do Côa há vários livros publicados e centenas de escritos técnico-científicos ou de simples divulgação. Mas a MST parecem bastar-lhe os recortes do extinto "Independente" do verão de 95 e está tudo dito. "Tacanhos rabiscos", "funcionários do paleolítico", "oportunistas", "sábios" aspados e outras atoardas do género é o que sobra de mais um dislate deste pretenso fazedor de opinião que afinal se deixou hipnotizar pelas opiniões, essas sim oportunistas (mas nem MST saberá porquê), daquele que MST clama como "a maior autoridade mundial na matéria"!!! Tanto disparate por junto!!
Que dizer de tanta insensatez e agressividade? Que MST é um ignorante nos assuntos do Côa é o mínimo. Que é um assumido ignorante está claro, pois ao emitir tão verrinosas opiniões não se digna sequer informar-se do que não conhece. Que, porque não convém ao seu discurso trauliteiro, não diz uma palavra sequer da razão porque teria a UNESCO classificado como Património da Humanidade tal pobre colecção de "tacanhos rabiscos"! Que MST não soube sequer plagiar correctamente as cronologias do Sr. R. Bednarik a quem tanto crédito concede, é outra evidência. Pela amostra, calculo que a generalidade dos artigos de opinião de MST enfermem da mesma carga de mal feito trabalho de casa e tenham para os leitores apenas mais um efeito de desinformação!
Explicar-lhe a importância arqueológica e patrimonial da Arte do Côa não é agora o que conta e, como já disse, está mais que explanada entre a comunidade científica ou entre o simples cidadão bem informado, até porque a sua não importância e descredibilidade parece ser para MST uma questão de fé. Seria falar-lhe em mandarim que calculo não domine, como não domina os assuntos da pré-história da arte.
Em jeito de fecho e ao invés de continuar no mesmo tipo de linguagem desabrida e ofensiva do escrito de MST, deixem-me antes apresentar aqui, escolhidas entre muitas centenas de exemplos, três situações singulares dos "rabiscos" do Vale do Côa, de três períodos bem distintos, entre a fase antiga ou arcaica paleolítica (± 25.000 anos) e a mais recente arte da Idade do Ferro (2ª metade do 1º milénio a.C.).
Entre o primeiro (foto de auroque da R. 1 do Fariseu) e o terceiro exemplos medeiam portanto mais de 20.000 anos. Apreciem-se, para além da beleza estética das figuras, as grandes variações estilísticas entre estes três motivos, que reflectem escolas de arte bem distintas, mais naturalistas e sensoriais as duas de idade paleolítica, com a notável concisão do traçado recto e aparentemente desconstruído do cervídeo da Idade do Ferro. E para se inventar este radical jogo de formas sidéricas passaram milénios de transformações culturais nas gerações que se foram sucedendo no vale (já pensou como se chegou da Renascença à arte impressionista e porque não vem esta antes da outra?). De muitas delas há em Foz Côa bons exemplos, gravados, incisos ou mesmo pintados, pois o Côa guarda um dos mais longos ciclos de arte rupestre da Europa. Quer melhores razões para não se ter construído um grande paredão junto ao sítio da Canada do Inferno que tudo submergiria, descaracterizaria e, eventualmente, destruiria ?
E... já agora, o Sabor não tem nada a ver com isto. É outra história. E o rio não é melhor nem mais selvagem do que o Côa. É igual e tão valioso quanto o Côa e, como ele, deveria ser preservado na sua integralidade. E até tem arte rupestre paleolítica! Calculo que não conheça bem nem um nem outro. Estará, mais uma vez, a falar por ouvir dizer! Será assim?