quarta-feira, 6 de agosto de 2008

FERNANDO BARBOSA, um excepcional desenhador de arte rupestre

desenhando as belíssimas gravuras magdalenenses da Rocha 16 do Vale de José Esteves

na Bulha, olhando a foz do Côa



Fotos: AMB (2006-7)


O Fernando Barbosa é a prova viva de que o Estado Português trata mal dos talentos nacionais! Ele não ajuda, é verdade, com a sua modéstia... É hoje um "funcionário do paleolítico" da direcção-geral do Côa, para usar a linguagem trauliteira, vinhosa e pseudo-sarcástica com que nos apodou um tal de Sousa Tavares. É pena que o seu fantástico "tacho" de servidor rupestre não lhe renda mais do que uns míseros 700 € mensais, após mais de 30 anos de devotado desenhador de arqueologia e particularmente de arte rupestre!

Apaixonou-se, e tal coisa, o que quer que seja, para sempre o agarrou, pelo mundo dos rupestres quando começou a trabalhar comigo no Vale da Casa (Douro) no já longínquo ano de 82. E logo num lote de difíceis rochas incisas da Idade do Ferro (vá lá) onde só podíamos trabalhar durante o dia sem condições de boa iluminação e onde tivemos que utilizar técnicas de visualização bicromática e até fazer alguns moldes de látex, parte dos quais foram entretanto dados como perdidos!

Foi o princípio de uma aventura que comigo se prolongou por sítios diversos da Peneda-Gerês. E quando convidado fui a vir "estudar Foz Côa", comigo aceitou mudar-se de armas e bagagens para este fim do mundo onde se escondia uma magnificente arte pré-história. Pelo caminho perderia a companheira em trágico acidente no IP4, no próprio dia em que ela, também desenhadora, iria preencher a vaga de desenhador nos quadros do então Centro Nacional de Arte Rupestre. Uma tragédia que a todos enlutou e uma mágoa que sempre lhe ficou. Mas que só deu ao Fernando mais força para, com alma, sentimento e muito talento, se dedicar ao desenho da grande Arte do Côa. Porque é verdadeiramente a arte paleolítica, a tal arte da ilusão, que o encanta e permanentemente desafia.

Foto: AMB
Trabalhando numa réplica, à escala e utilizando tecnologia pré-histórica, de auroques da Canada do Inferno, para a exposição "A Arte que o Côa Guarda" (que está actualmente em Freixo de Numão, após passar sucessivamente pela Guarda, Braga e Sabugal). A obra final nunca foi exposta (foi substituída, evidentemente), pois seria roubada da porta das antigas instalações do CNART em Foz Côa e não foi até hoje encontrada. Alindará um jardinzinho ou o interior caseiro de algum ignorado amante da arte rupestre?! E pensará o indígena estar na posse de algum original?
Foto: AMB

A primeira pedra do Museu do Côa, uma obrinha de FB no mais duro xisto da região do Côa
Foto: AMB

assim apreciada e convenientemente enterrada pela então Ministra da Cultura, em 26 de Janeiro de 2007, no epicentro do que será o Museu do Côa
Foto: Manuel Almeida/CNART

Mas o desafio permanente para FB é mesmo tentar recuperar o gesto pré-histórico, perceber com quantos traços e de que maneira se gravou aquele auroque, estoutro bode, ou este absolutamente único cavalo de focinho afilado da Rocha 23 da Quinta da Barca em originalíssimo estilo. 
O artista decifra o artista... e quando este foge das formas estereotipadas a coisa tem muito mais graça. Por exemplo, quem e quando terá inventado a representação do movimento em animais com duas cabeças? Como a magnífica cabra da Rocha 3 da Quinta da Barca. É aqui que entra o jeito e o talento de FB que, gesto a gesto vai tentando perceber se o traço fóssil de um gesto milenar tem aquela maneira que já, por acaso, nos apareceu por ali ou por além... E pese embora surgirem hoje lasers que compõem até muito rapidamente um painel bonitinho, nada há que substitua a paciência de um bom decalque directo em arte rupestre, o primeiro passo da interpretação. Por isso, quem nunca desenhou verdadeiramente um painel rupestre (dos desafiadores) jamais conseguirá entender completamente o mundo que lhe está por detrás. E as suas interpretações de escriba dificilmente passarão do campo das generalidades e do copy-paste!
 
Desafiando os mosquitos na descodificação dos traços magdalenenses da Rocha 23 da Quinta da Barca. Foto: AMB

É portanto a FB que se deve um apreciável contributo à descodificação gráfica da arte paleolítica do Côa, pois o desenho é o primeiro elemento do registo de campo e a base de todos os outros. Pode ou não ser corrigido com outras técnicas, nomeadamente fotográficas e digitais, mas o desenho está na base de tudo. E ao talento natural de um grande desenhador, FB juntou a paixão pelos grandes artistas da Idade do Gelo que nos deixaram as suas marcas magníficas e intemporais em Foz Côa.
 
Por isso gostaria de aqui apresentar em primeira mão, a mais recente obra maior de FB na decifração da Arte do Côa, terminado há duas noites atrás (é verdade, continuamos a trabalhar sempre à noite), o painel 27 da Rocha 24 de Piscos - nesta rocha estão pelo menos 36 painéis decorados, alguns com pequenas obras-primas de sensibilidade artística saídas da mão de um mesmo artista magdalenense. E ao apreciar este desenho, que tão bem captou o "espírito do lugar", vêem-me à memória os densos painéis em tudo idênticos desenhados por A. Glory em Lascaux, também eles com uma paciência de mais de uma década, e parte deles muito provavelmente da mesma época que o deste "nosso"artista de Piscos. 


Desenho: Fernando Barbosa

Entenda-se aqui uma dupla homenagem, desde logo aos artistas esquecidos do tempo longo paleolítico da foz de Piscos e ao Fernando, que hoje nos permite podermos apreciar obras tão densas e belas com uma carga de pequenos pormenores técnicos há mais de 15.000 anos escondidos nas dobras de um estranhíssimo afloramento xistoso desse lugar único que é a foz de Piscos, desse sítio maior que é o Vale do Côa!


Para que conste, prefiro homenagear os amigos enquanto estão vivos, do que louvá-los post-mortem, uma enraizada devoção nacional!

5 comentários:

Anónimo disse...

Os meus sinceros parabéns...é uma homenagem merecida,e que...pessoas como MST jamais terão o prazer de entender.

com os melhores cumprimentos:

Sofia

Anónimo disse...

Obrigado…António, obrigado pelo Fernando (que não precisa que eu agradeça)!
Espero, que ao menos no próximo ano usufrua de mais 10%...Será uma insignificância perante tanto dinheiro esbanjado em servilismos e que cada vez mais uma gestão estratégica e optimizada conduz a tal.
O Fernando… é a alma da reinterpretação dos nossos antepassados mais remotos…é a conexão do presente com o passado – Só uma sensibilidade impar concretizaria tal façanha!

Mas aqui no paleolítico… é o homem!

“Nem Baco nem meio Baco:
Aqui é o homem
Que nada há que não suporte
Mas suporta e persiste.
Aqui é o homem até à morte”

António Cabral, Poemas Durienses


Obrigado Fernando!!!

FD

Oberon disse...

Justíssima homenagem (em vida, como deve de facto ser) ao Fernando Barbosa. Se quem de direito ler este blogue outras homenagens aos "funcionários do Paleolítico" devem sem dúvida seguir-se...
Pobre País este que não valoriza o que é seu e enxovalha quem se dedica de corpo e alma a entender e proteger a verdadeira alma de Portugal!

JMCR disse...

O Fernando provavelmente nem se lembrará de mim, mas eu nunca esqueci a imagem de profissionalismo, rigor e paixão que ele me deixou nos poucos dias em que nos cruzámos, numa equipa dirigida por Francisco Alves, na Boca do Rio, no início dos anos 1980. Para quem, como eu, estava então a chegar ao mundo da Arqueologia, precisamente como desenhador e vindo da área do desenho técnico, foi um contraste imenso com outras práticas, mostrando que era possível dar ao desenho a dignidade que merecia como ferramenta de registo arqueológico.
Que recorde, nunca mais me cruzei com o Fernando, e perdi-lhe completamente o rasto há muitos anos. Nem sabia que estava na equipa do Côa.
Agora, quando li este post, voltaram-me à memória boas recordações, de alguém que sabia muito e gostava de o partilhar, com simplicidade e boa vontade.
Por isso, deixo um modesto contributo para o reconhecimento do percurso profissional e de vida do Fernando, muito para lá da retribuição, material ou outra, que o Estado português lheu deu ou alguma vez dará.
Com saudade e um grande abraço.

Jorge Raposo

Anónimo disse...

Fernando you're the best.